terça-feira, 7 de agosto de 2012

Mar Desmorto, III

Dia 11 de junho de 2015 - 3º ano da Era do Apocalipse


Finalmente cruzamos a cidade e ainda estamos vivos, graças a Deus. Tenho muita fé e oro todas as noites para que o pior de nossa provação já tenha passado, e que Ele se apiede de nós. Tivemos uma semana de grande sacrifício nas ruínas de Juiz de Fora. Apesar de tudo o que nos aconteceu, conseguimos encontrar bastante alimento, água, e as peças que o Coronel Matsumoto vinha procurando tanto. Também conseguimos muitas armas e munição para o Exército de Cristo, que já estavam quase no fim. Graças a Deus por isso também, porque sem  armas seria impossível continuar realizando a Sua obra.

Há dois dias perdemos nossa irmã Tatiana. 
O Coronel insistiu muito para entrarmos na antiga Zona de Segurança, porque ele acreditava que a Resistência ainda estivesse ativa... Logo que nós chegamos, percebemos que já estava tudo acabado, mas o Coronel insistiu que deveríamos entrar. Foi assim que Tatiana foi mordida. Sei que foi um choque muito grande para o nosso líder ver seus camaradas vagando pelo quartel sem as almas, ainda segurando as armas e vestindo as mesmas fardas que ele e os rapazes (e agora Miranda também) ainda usam. Creio que foi isso que o fez perder a razão. O pobre homem ainda acreditava que o Comando da Zona da Mata estava resistindo, e que só não estavam respondendo ao nosso sinal por problemas com central de comunicação. Achava que ainda podiamos ajudá-los, mas, que Deus me perdoe, eu sabia e o alertei que não havia a mínima chance, logo que os vi aquela quantidade de mortos tornados à vida se aglomerando como uma legião do Inferno no entorno da antiga base.

Que deus me perdoe, mas a culpa foi dele.

Tatiana estava procurando por um determinado armazém, conforme o Coronel lhe havia ordenado. Mas ela não encontrou, e, quando voltou, vimos que tinha sido mordida perto do pulso. No início ela negou, dizendo que tinha caído em cima de uma das cercas de arame que marcavam o perímetro. Mas, depois, quando viu que não tinha mais como continuar negando, começou a chorar em prantos e acabou confessando que tinha sido mordida por um deles. Após nossa última refeição juntos, ela se despediu de cada um de nós, e se ajoelhou, ainda chorando muito, enquanto Rodrigo se posicionava atrás dela. O golpe foi rápido e forte, e creio em Deus Pai que foi uma morte misericordiosa. Ela não sofreu nada perto do destino que, de outra forma, esperava por ela - a menos que não tivesse sido mordida, e disso o Coronel Matsumoto sabe muito bem. Foi por isso que o vi limpando discretamente uma lágrima na hora do funeral - algo que nunca tinha visto ele fazer, apesar de tantos que já perdemos.

Depois da alma libertada, queimamos o corpo com bastante gasolina - mesmo depois de Pedro, o soldado, ter protestado que deveriamos poupar o combustível. Minhas esposas improvisaram um crucifixo onde escrevemos o nome da nossa irmã Tatiana. Cantamos um louvor juntos, e pedimos a Deus pela alma imortal de nossa querida irmã falecida. Permita o Senhor que ela descanse em paz.

Ainda tiveram o sangue frio necessário para vasculhar a base, e por isso não devo me queixar, porque foi onde encontramos as armas que agora são nossa segurança e reforçam a garantia de que o Exército de Cristo vai triunfar sobre a Legião. O que o Coronel pretende com as peças que pegou é algo que ainda preciso descobrir, mas isso virá com o tempo. Estávamos terminando de carregar o caminhão quando vimos o fogo na cidade, e tivemos que partir com a máxima rapidez, antes que a passagem se tornasse impossível dentro do perímetro urbano.

Alguns de nós começaram a ficar impacientes quando o caminho que seguíamos, outra vez, estava bloqueado por carros. Nosso veículo, graças a Deus, é muito forte, mas, mesmo assim, eram muitos carros para empurrar. Foi minha amada Míriam quem primeiro viu o sinal de fogo no céu, e depois todos vimos que era um homem quem sinalizava. Ele estava desesperado, e quando o caminhão começou a manobrar ele veio correndo em nossa direção, se lançando por cima dos carros amontoados no meio da pista enquanto o incêndio já tomava uma boa parte da cidade. Ele era a  própria face do terror, e não teria conseguido nos alcançar se o Sargento Torres não tivesse saltado do caminhão para ajudá-lo. É um homem muito bom, o Sargento Torres - oro todas as noites para que aceite a Palavra e venha lutar sob bandeira do Cordeiro.

Assim que conseguiu subir, Pedro Rocha e Pedro, o soldado, foram tirar as armas do recém chegado. Por isso não posso culpá-los, depois de tudo o que temos visto e ouvido ao longo deste último ano em que sobrevivemos juntos. Era só por uma questão de segurança, mas, quando Miranda se juntou a eles, ficaram mais cruéis, e começaram a dar vazão a raiva que vinham reprimindo em seu peito após a perda de tantos companheiros e entes queridos. Deixei que dessem curso a essa ira inicial, até que tivesse a oportunidade de intervir. Assim que pude, foi o que eu fiz.

O homem estava terrívelmente abalado, enrolado em um cobertor sujo com a face desgrenhada coberta de fuligem preta. Parecia não cortar os cabelos ou se barbear desde os primeiros dias do Apocalipse. Sua pele estava preta, como se tivesse estado no meio do fogo e escapado por puro milagre - Deus é grande e tem um propósito para cada um. Quando perguntei pelo seu nome, ele vacilou, e só quando insisti pareceu se lembrar. Não sei dizer o porque, nem posso julgar seus motivos, mas algo me diz que ele mentiu. 

Foi então que Miranda voltou para junto de nós e percebeu que o homem estava ferido. Apontou o fuzil para o pobre infeliz, e estava prestes a disparar contra a sua cabeça quando o Doutor Sérgio se prontificou em examinar o braço do rapaz e disse que, graças a Deus, ele não foi mordido.

__ Posso não ser médico, mas entendo de dentes. Esta não é uma mordida, mas de qualquer jeito deve infeccionar. Além do mais, este curativo está uma merda. [peço perdão por escrever esta palavra, mas foi o que ele disse]

O Dr. Sérgio tem sido fundamental para a nossa sobrevivência, e deve ter sido um excelente dentista. Sem ele, acredito que a maioria de nós já estaria morta. Apesar de se dizer ateu e dos olhares indecentes com que persegue minha amada Cecília, acredito que é uma boa alma. Já conduzi ovelhas desgarradas antes, e, com o tempo, tenho fé que o milagre de Jesus vai acontecer em sua vida também.

O homem que resgatamos disse ser natural de Juiz de Fora. Assim que soube disso pelo interfone, o Coronel Matsumoto mandou que o homem fosse levado à cabine. Pedro e Miranda o conduziram, meio aos empurrões, até o teto solar, e eu percebi quando a jovem o segurou pelo braço ferido apenas para causar dor. Preciso encontrar um tempo para conversar com essa moça, antes que a influência do seu novo namorado acabe por corromper ainda mais profundamente sua alma. Acredito que, apesar da frieza com que começou a tratar as perdas dos nossos, ela ainda não se recuperou da morte de Davi, e está tentando bloquear a lembrança e preencher o vazio em seu coração da maneira errada. Há tão poucas almas para cuidar, mas de quantos cuidados elas precisam, ó Senhor!

Com a ajuda do recém chegado, o irmão Wiliam encontrou uma rota relativamente livre, por onde nosso veículo conseguia passar. Neste momento em que escrevo já passa da meia-noite, e o Coronel continua interrogando o homem que diz chamar-se Mauro, enquanto os demais terminam de montar o acampamento às margens do rio. Não estou certo de que seja o mais seguro, e continuarei dormindo com minhas esposas na carroceria blindada. É o melhor para nós.

Que Deus nos proteja dos perigos desta noite.                                                                 

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