quinta-feira, 26 de julho de 2012

Mar Desmorto, II




O principal cruzamento da cidade se converteu em uma ilha de automóveis batidos ou abandonados às pressas logo nos primeiros dias do apocalipse. Hoje, três anos depois, eles são a prova arqueológica de que as regras da civilização sucumbiram à selvageria longamente reprimida da nossa espécie. Em fuga desesperada, as  pessoas abandonaram qualquer noção de equidade ou cooperação. A lei do mais forte prevaleceu, e, escravas dessa regra, as sociedades humanas foram devoradas por si mesmas.

Carros, ônibus e caminhões se entulham no coração viário da cidade: e em todas as principais rodovias, pelo que soubemos antes das estações de rádio caírem. Eram artérias entupidas, através das quais nada fluiu, e todos os que seguiram o plano de evacuação ditado pelo Governo Provisório tiveram que abandonar os veículos ou morreram em seus carros.

"... mantenham seus veículos abastecidos e dirijam até o abrigo mais próximo. Todos os que se refugiarem nos abrigos receberão alimento, agasalho e uma dose do soro imunizante. Todos devem deixar as suas casas imediatamente. Lembre-se: não serão admitidos animais de estimação..."

Não havia espaço para todo mundo. Não havia espaço nos hospitais. Não havia espaço para mais ninguém nos abrigos improvisados nas escolas e estádios, tampouco nas "zonas de segurança" organizadas pelas Forças Armadas. Logo, também não haveria comida, e as pessoas começariam a lutar entre si. Quando os mais fracos se transformaram na multidão dos mortos-vivos, os mais fortes já estavam reduzidos à fome ou ao canibalismo. No fim, os que não foram mordidos pelos zumbis morreram comidos por seus concidadãos.
  
***

A horda dos desmortos avança como uma onda que toma ambas as avenidas. Eles fogem da pira colossal que engole a cidade. Continuo subindo pelos chassis, tentando chegar ao centro da ilha, onde talvez demore mais tempo até ser devorado. Ainda sem acreditar, vejo a imensa máquina metálica arrastando carros e rompendo a maré desmorta com seus para-choques e placas de aço, suplantando os gritos hediondos com a buzina de cargueiro. Quatro faróis de milha fixados no teto da cabine de carreta iluminam a dianteira, enquanto dois holofotes móveis na carroceria vasculham as laterais.

Só que eles estão longe pra caralho. O que vou fazer é algo desesperado, mas não há tempo para ponderações: eu preciso arriscar, e minha melhor chance está nos Cienfuegos Maggia que trago na valise.  

Em alguns segundos começam os estouros. Seis tiros de chamas amarelas, vermelhas e azuis brilham no céu escuro - mas o barulho e a pirotecnia atiçam os mortos-vivos, que agora se arrastam por entre os carros na minha direção. Talvez minha atitude impulsiva tenha sido mais do que vã - talvez tenha sido minha estupidez final. Eles vão me deixar para trás.
***


Um dos holofotes me deixa cego por um instante. Ouço uma voz de comando, e a carreta muda o seu curso, esmagando brutalmente os desmortos contra as carrocerias. Estou correndo o mais rápido que posso, mas eles ainda estão a cinquenta metros de distância. Continuo meu caminho por entre os carros abandonados, agora mais espaçados, evitando ao máximo tocar o chão - zumbis mutilados tem uma predileção por se esconder debaixo dos veículos. A buzina soa impaciente, mas estou quase chegando. Saco meu machado para correr os últimos dez metros pelo asfalto, pois há vários deles no meu caminho. Tomo um último fôlego enquanto traço mentalmente minha rota e determino o meu curso de ação.  

A carroceria é alta e reforçada com chapas de aço, e na parte de dentro é  estruturada por uma espécie de gaiola montada com barras de metal. É uma carroceria curta, porem elevada, montada sobre um único eixo e adaptada à enorme cabine de scania. Os desmortos se aglomeram batendo com os punhos cerrados no metal, mas dois homens usando armas semelhantes a roçadeiras reduzem os zumbis que se aproximam a meras carcaças esquartejadas no asfalto. O mais alto deles, vestindo os farrapos de uma farda do exército, desce para o chão e vem abrindo um círculo de carnificina e vísceras espalhadas. Eu corro em sua direção derrubando os desmortos no meu caminho, lutando desesperadamente para chegar até a escada de metal soldada na lateral da carroceria.


***

Subo rapidamente, com o veículo em movimento, e estendo a mão para ajudar o militar com a roçadeira letal. Antes que eu consiga agradecer pela minha vida, sou cercado por dois homens de aparência hostil.

Um deles é negro e inflexível, com a face dura e a respiração pesada. Ele se aproxima com um cano de ferro nas mãos. O outro é caucasiano, tem os cabelos raspados e veste uma farda; este vem com um olhar maligno e com os punhos cerrados. Levanto a mão para saudá-los, mas o homem em traje militar me recebe com um soco no fígado.

__ Tirem as armas dele.  

Enquanto sou rendido e desarmado, a mulher que deu a ordem surge entre os dois. Ela deve ter pouco mais de vinte anos, e veste uma jaqueta do exército grande demais para o seu tamanho. Apesar de ter a pele e o corpo delicado de menina bem nascida, agora seu semblante está marcado com as indeléveis cicatrizes dos que sobreviveram ao fim da própria espécie.

A carreta dá solavancos enquanto abre caminho entre os mortos. Todos se seguram nas barras da gaiola de ferro - há mais quatro pessoas no fundo da carroceria, além de outro soldado, vestido com colete à prova de balas e manejando outra arma-roçadeira em seu posto de combate. O homem que me resgatou também retorna ao seu posto, ignorando os demais, enquanto eu tomo fôlego para responder à enxurrada de perguntas da mulher. Antes de receber outro estimulante murro no fígado, sou salvo pela intervenção de um cavalheiro com a voz clara e bizarramente tranquila.
 .  
__ Soltem ele. Miranda, eu e o Dr. Sérgio assumiremos a partir daqui. Vocês dois podem retornar os seus postos.

O homem de pedra obedece imediatamente e assume um dos holofotes, mas o soldado caucasiano hesita por um instante, me encarando. Sustento seu olhar maligno, e vejo nele uma raiva sem freios. Mais tarde terei que pensar em uma maneira de lidar com ele. Aí está um homem que tem sede de sangue.

 __ Pedro, eu e o Dr. Sérgio nos encarregaremos do recém-chegado. Retorne ao seu posto.

O soldado obedece, diante do sorriso de aprovação daquele que se aproxima.

É um cavalheiro de baixa estatura e de pele parda, beirando os cinquenta anos. Tem os cabelos e a barba bem aparados, e está trajado com uma camisa de botões bastante limpa, embora amarrotada e um tanto sofrida. Seus gestos são contidos, a fala é pausada. Ele parece absurdamente NORMAL - exceto pelos olhos, que quase não piscam. O outro - a quem se referiu como Dr. Sérgio - é o exato oposto: tem aspecto sujo e desgrenhado.

__ Desculpe meus companheiros, eles não dormem há algum tempo e estão bastante nervosos.
__ Eu notei.
__ Eu me chamo João Paulo, pastor de almas e servo de Cristo. Qual é o seu nome?

Por um instante permaneço mudo, com a mente vagando por sendas estranhas. Os olhos fixos do pastor vasculham a minha alma.

__Diga, filho. Qual é o seu nome?

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