sábado, 29 de dezembro de 2012

Hospital São Marcos




Minhas mãos ainda estão tremendo. Seguro a faca de aço negra como se ela também pudesse me trair - algumas armas são traiçoeiras por natureza, e eu sempre soube que essa é uma delas. As algemas ainda ferem meus pulsos, enquanto o Sargento Torres chega aos estertores da morte com sangue minando em abundância pelo rasgo profundo que abri entre suas costelas.

__ Seu desgraçado... eu... salvei... a sua vida... - a voz desaparece enquanto o sangue escorre de sua boca.
__ Até a vista, Torres. Você é esperado no Salão dos Eleitos.

E a faca negra pôs um fim ao sofrimento do Sargento. Limpei o sangue da lâmina e a devolvi à bainha magnética, oculta sobre o meu tornozelo. Não há espaço para o remorso - tenho minhas próprias costelas quebradas para me preocupar.

Enquanto vasculho o corpo em busca das chaves que libertarão minhas mãos, meu espírito divaga entre os mundos da dor e da fadiga extrema. Tento manter a calma e a frieza, mas meus olhos e minha pele estão queimando. Eu tenho febre, e os tentáculos do delírio começam a se enterrar profundamente no meu cérebro.

É quase certo que isso vai infeccionar. E se infeccionar, você já era
É quase certo que isso vai infeccionar.
É quase certo que...
...você já era 

*** 

Minha consciência vaga entre os mortos, que surgem ao meu redor e frutificam nos meus pesadelos. As touceiras de mato estouram o asfalto, enquanto arbustos retorcidos crescem nas marquises. Vidros quebrados e cortinas esvoaçam no meu delírio, e os números dos mortos vão aumentando. Acidentes. Janelas escancaradas para sempre, enquanto a mente oscila entre a consciência e a inconsciência, como o cambalear dos mortos ou dos marinheiros que finalmente chegam ao porto final. O horizonte está tomado pela fumaça negra, ardendo, ardendo, ardendo... o incêndio me consome por baixo da pele, enquanto os mortos vêm na minha direção, cambaleando... e eu cambaleio com eles, mais morto do que vivo. São delírios de febre, delírios de um morto-vivo.

IIIIIIRRRRRCCCCHHHH!!!!!!!!!!!
    IIIIIRRRCCCCCCHHHH!!!!!!!!!!
       IIIIIRRRRRCCCCCCHH!!!!!

Os desmortos são o meu pesadelo tornado real.
Agora todos eles estão vindo na minha direção. Saídos dos becos, das esquinas, alguns se aglomeram sobre as janelas quebradas esticando os braços impossíveis. Em poucos instantes, os mortos se agrupam em uma horda, e desejam minha vida mais do que eu jamais desejei. Hesito. Por um momento, quero que me apanhem... mas no instante seguinte, ouço meu próprio coração batendo acelerado, e isso fez toda a diferença.
Quero que morram. Quantas vezes for necessário. Quantas vezes for preciso matá-los.

Deixei o corpo do Sargento Torres para trás, levando sua mochila e tudo o que consegui carregar. Não há tempo para selecionar carga, ou para queimar o corpo como ele teria preferido. Até na morte o bom soldado me presta um último favor, contendo a primeira leva de desmortos famintos que se lança para despedaçar o cadáver ainda quente. Minha última visão foi a de um desmorto idoso num terno azul-marinho chafurdando a cabeça nas tripas do defunto expondo-lhes as entranhas, enquanto outros dois zumbis já bastante destroçados pelas intempéries abrem o abdomen para disputar os intestinos. Um quarto zumbi devora a sua cara, e esta foi a última vez que olhei para trás. Contive o vômito, e mal tive tempo de descarregar a pistola .40 que Torres me deixou como herança. Abri meu caminho num tiroteio que atingiu mortos a esmo, derrubando alguns deles enquanto corria pela minha vida. Os desmortos gritam, e seu ódio é tanto que rasga as gargantas.

São muitos, e sempre mais, saídos de todos os lugares de onde menos se pode esperar. Debaixo dos carros, de dentro dos becos e escadarias - um deles é empurrado contra uma janela e cai de um quarto andar, se espatifando contra a marquise... e ainda assim a massa disforme de carne podre e ossos partidos continua a se mover. Contá-los seria um erro a essa altura, mas já são mais de uma dezena. Começo a correr, mas o machado é pesado demais para o meu braço doente. Minha corrida é pela sobrevivência, e o tornozelo direito, sobre o qual escondo a faca negra, parece contaminado pela traição que emana da lâmina.

Eu tropecei.
Tropecei e caí.

Eu nem vi de onde saiu o desmorto que caiu comigo. Mas vi com uma clareza abominável os vermes em sua boca arreganhada, com um palmo de língua podre pendendo sobre meu rosto. A face abominável e sem olhos, com o crânio meio exposto... reduzida a pedaços de carne negra e fragmentos de osso pelas últimas balas da pistola. Uso a coronha para arrebentar o crânio de um segundo, e derrubo um terceiro com um chute - somente quando meu pé ficou enterrado no abdômem estufado me dei conta de que estava descalço. Outros três se aproximam pelas minhas costas, mas eu consegui escapar, como um animal que reaprende a usar as quatro patas. Corri pela minha vida, e me desesperei quando a consciência começou a deixar o meu corpo.

Minha visão periférica se apagava como se eu estivesse em um túnel. Mas eu ainda enxergava o suficiente para encontrar uma saída. Não olhei para trás, não olhei para os lados - não faz diferença, eles estão por toda parte. Chego ao topo da rua, e vejo as cores laranja e negra do incêndio devastador que eu comecei. A cidade foi engolida pelo fogo, que continuava avançando, lento e inexorável.

Há um muro, um muro alto com barras de ferro. Sobre o muro, vi os vultos que contemplavam as chamas quase imóveis. Eu corri em sua direção, arfando e lutando para não cair. Os mortos descem atrás de mim. Um imenso portão azul com grades barra a minha passagem. As letras se embaralham, mas consigo ler as palavras ocultas sob o lodo e os caracteres faltando: Hospital São Marcos

__ Abram! Abram! Pelos deuses, abram os portões!

Mas eles não se movem. Poucos são os que se dignam a me dirigir um olhar, tomados pelo fascínio das chamas. Um deles começa a gargalhar de maneira histérica, e aponta uma carabina na minha direção.

Pow! Tsi-tchak.

__ Porra! Abra o portão! Eu estou vivo!
__ Por pouco tempo! tempo! tempo! Hahahahaha!

Pow! Tsi-tchak.

Ergo os braços e começo a desfalecer, a vida finalmente cansada de habitar o corpo consumido pela febre. Eu me ajoelho, entregue à minha sorte final. Morrer pelo metal é uma sorte melhor do que ser devorado vivo.

__ Abra o portão imediatamente, Juliano! Eu disse para abri-lo AGORA!
__ Mas, ele já está morto! morto! morto! morto!
__ Abra!!! Você não não o reconhece? Abra de chofre ou demove-lo-ei do cargo de porteiro! Você não o reconhece?! É o meu bom amigo Jango!

 

sábado, 6 de outubro de 2012

Má Companhia, V





Quase ninguém sabia o que fazer. Foi tudo muito rápido.
Enquanto eu pagava o preço do sangue pela morte dos meus inimigos, meus improváveis aliados jogavam com o caos para seu próprio ganho - e o risco era todo meu. Se vencessem, seria pelo meu sofrimento. Mas nada estava muito claro, e eu não pretendia esperar para ver.

Nuvens escuras encobriam minha visão, e a dor se espalhava pelo meu corpo assim como o incêndio se espalhava pela cidade, que àquela altura, queimava há dois dias enchendo o céu com fuligem. De repente me senti fraco, sangrando, uma sombra cambaleante de quem eu já tinha sido - mas quando vi meu próprio sangue vivo, soube que não era um dos mortos.

Eu não morreria naquele dia. Os eleitos do Ceifeiro eram outros.

Pedro finalmente cruzara o limite dos estertores, gemendo e chorando pela dor indizível, até que por fim se afogou no próprio muco, que escorria pela boca numa torrente de agonia. Num instante, os olhos ficaram fixos, e sua jaqueta do exército estava ensopada de babugem e sudorese tóxica. O outro Pedro morreu primeiro, de forma ainda mais miserável.... Pelo menos o Metralha teve uma mulher para chorar por ele - embora não fosse a sua própria. Esta chorava sob o efeito do veneno, e apenas por sua própria desgraça.

Miranda estava chorando, e o Dr. Sérgio a fazia engolir o chá alucinógeno. Aquilo seria algo realmente divertido de se ver, mas a minha visão começou a falhar, de maneira que eu não entendia nada claramente... ela chorava, se contorcia e se mijava, com o muco saindo pela boca. Mas o Dr. Sérgio se empenhava em salvá-la.... e ele FARIA isso, o filho da puta.

Minhas pernas fraquejaram, e então finalmente tombei.

Quando acordei, vi o rosto do Pastor João Paulo me olhando com aqueles olhos que não piscavam. Sua boca se movia, mas eu não era capaz de ouvir uma palavra... mas pude discernir algumas delas pelo movimento dos seus lábios - eles diziam diziam "obrigado" e "lamento". Vários pares de olhos me encaravam, com dolorosa resignação, e então compreendi que seria sacrificado

Os meus braços estavam atados às minhas costas. Frias algemas apertavam os meus pulsos.

O Sargento Torres estava de pé à minha frente. Rodrigo, com seu desgastado uniforme de policial, vinha com a faca Kukri exposta. Eu não era capaz de articular uma fuga, mas TINHA que sobreviver, e se tivesse alguns minutos para pensar, ganharia mais um dia de vida.

    [Conheço um terceiro feitiço: no calor da batalha,
           se tenho grande
necessidade, embotará as lâminas dos inimigos.
          Suas armas não farão nenhum dano;]

[Conheço um quarto:
      Me livrará rapidamente se os inimigos querem 
sujeitar-me rápido com correntes fortes
um encanto que faz com que os grilhões
         saltem dos pés, e as ataduras saiam das mãos;]


__ Seu último pedido e suas últimas palavras, estrangeiro.
__ Quero fumar um cigarro. Um daqueles que está no bolso do defunto.
__ Pega um cigarro pra ele, Wiliam. Deixem esse cretino fumar.

***

__ Está pronto? Tem uma última palavra a dizer?
__ Escorbuto.
__ O quê???
__ Alguns de vocês estão com escorbuto. E eu sei onde encontrar alimentos frescos.

sábado, 29 de setembro de 2012

Má Companhia, IV

11 de junho de 2015 - 3º ano da Era do Apocalipse (Continuação)

As coisas vão mal.
Neste exato momento, o Senhor me envia uma provação que não sou capaz de suportar em silêncio.Choro, e minhas lágrimas ardem em minha face como se fossem a vergonha vertida em ácido.

O coronel veio de novo até nós, com sua demanda por carne e espírito. Serei eu, oh Senhor, digno de tamanha provação? Serei eu humilde o bastante para silenciar enquanto o homem envolto em pecados se satisfaz com a carne de minha esposa?

Esse é o preço que me é cobrado. Os gemidos de Cecília me enchem de vergonha e humilhação...
Ele está com ela, a beira do lado... eu os ouço em pecado, porque sei o que é pecaminoso e o que não é. E tem sido assim por quase um ano, desde que nos unimos à resistencia. O Coronel é nosso líder, e ele tem direiro a se satisfazer como homem... Ou não será o nosso líder mais do que um homem...
Ele não é mais que um homem, tampouco o sou eu.


Aos olhos de Cristo, isto é ABOMINAÇÃO.

A besta assumiu o corpo do Coronel novamente... para satisfazer seu desejo profano, nada além de dor e humilhação é imposto a minha família..

Preciso AGIR. o Senhor meu Deus está comigo.
Nada posso fazer senão orar em silêncio, assim como o estrangeiro o faz, na beira do lago. Estranhos aliados me envia na hora incerta, oh Senhor!

Que assim seja... mas minha fé não pode suportar muito tempo...
a manhã surgirá, trazendo as boas novas e a  revelação.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Má Companhia, III





Acordei com o sol  mutilando meus sonhos com sua motosserra de luz. Por um momento, era como se eu estivesse de novo sentado na sala da minha casa, comendo uma pizza gelada e curando a ressaca diante da TV. No sonho, eu assistia a algum desenho animado ancestral sobre gatos e ratos, enquanto crianças estúpidas brincavam com facas em volta do meu sofá. Mas o sonho se foi, e com a luz do novo dia veio a lembrança da noite escura.

Eu me lembrava.

Ratos, ratos, ratos - a voz dentro da minha cabeça não cessava de repetir - eram apenas ratos, ratos roendo e roubando da adega do Rei.


***

Já estavam todos de pé, discutindo entre si e batendo as cabeças - o mal súbito que se abateu sobre a "Resistência" deixou o grupo acéfalo, sem a menor sombra de comando. Matsumoto insistia em tentar fazer com que Pedro metralha falasse alguma coisa, mas o bravo soldado estava chorando como um bebê,  mijando e enchendo as próprias calças de merda, enquanto Míriam o fazia beber água com uma insistência deprimente - o homem vomitava a cada trinta segundos, e se borrava em sangue num fluxo contínuo.

Pedro, o lacaio, estava ainda pior, e o grupo já o tinha abandonado ao próprio azar. Estava encostado em uma árvore, sentado sobre uma poça de mijo, estrebuchando em dolorosa agonia. Os olhos perdidos e arregalados, estúpidos como os de um bovino, pareciam não acreditar - mas não é preciso acreditar na morte para ser um homem morto: sua língua pendia numa ânsia interminável, a respiração cada vez mais curta. Não lhe restava mais que um par de minutos, e ele morreu sozinho.

Viveram como ratos e morreram como cães - não era um saldo ruim.


[Um homem glutão que bebe mais do que deve
 atrai dor sobre si:
 Da mesa do sábio ele se serve sem ser convidado
E depois muito reclama, por sua barriga inchada]


Miranda chorava de dor e humilhação. Urinava nas próprias roupas e tremia descontroladamente, enquanto repetia para si mesma que não queria morrer. O Dr. Sérgio a fez engolir óleo de soja, o que a fazia vomitar, e depois vomitar mais ainda. Obrigou-a a comer vários pedaços de carvão da fogueira da noite anterior - apesar dos protestos da cadela, o dentista parecia determinado a salvar a sua vida, e sabia o que estava fazendo. Estavam todos atordoados pela energia com que ele lidava com tudo - era o único do grupo que conseguia pensar claramente (além de mim mesmo).

__ João! Pegua aquelas flores na beira do lago! As amarelas!
__ aquelas? Mas... Sérgio... por Cristo, aquilo é venenoso! Você vai...
__ FAZ O QUE EU TO MANDANDO, PORRA! AGORA! VOCÊ POR UM ACASO TEM UMA AMPOLA DE ATROPINA ENFIADA NO RABO?!

Enquanto o Pastor hesitava, Sérgio Vidal o empurrou para tirá-lo do caminho, e se lançou na lama do lago agarrando os galhos do arbusto com flores grandes e amarelas. Eram flores de trombeta, e até onde eu sabia, eram conhecidas por serem venenosas...

Tanto melhor se assim o fosse. Mas ele realmente sabia o que estava fazendo.


***

__ O que você fez com eles, seu DESGRAÇADO?!
__ Tentei impedir que eles bebessem a garrafa. Não tive nenhuma participação nisso, e você SABE.
__ MENTIROSO! - a calma desapareceu da face de cyborg, e Matsumoto se lançou sobre mim como um animal raivoso. Sua cara estava vermelha e seus olhos estavam injetados de ódio.

Não tive tempo de me esquivar do murro que me acertou na cara - e, para ser franco, eu nem ao menos tentei. Quando ele me derrubou, comecei a gargalhar. Meu riso não era apenas por achar graça da situação - meus torturadores morrendo no meio da própria merda. Era também a única arma que me restava. Meu riso o deixava louco, e quanto mais louco ele ficasse, com mais sede entraria na armadilha. O fato é que eu não podia deixar de rir.

[Um golpe de sorte. Você só precisa de um golpe de sorte. Os deuses estão contigo]

__ DESGRAÇADO! DESGRAÇADO! - o homem esmurrava minha cara, e rolávamos pelo chão. Mas aquilo me fazia rir mais ainda, e ainda mais alto: meu riso reduzia o honrado comandante ao mais feroz dos animais. Todos olhavam abismados enquanto o homem me surrava, e eu nada fazia para me defender.

__ EU VOU MATAR VOCÊ, DESGRAÇADO!!!

Foi necessário que o Sgto. Torres e Rodrigo, o portador da temível faca kukri, segurassem o coronel pelos braços. Os outros estavam boquiabertos, apavorados demais para fazer qualquer coisa. O Pastor observava em silencio. Adivinhei que ninguém ali jamais tinha visto o seu líder perder o controle - e esse crédito era devido a mim. Eu gargalhava como um louco, enquanto cuspia o sangue que escorria por dentro do meu nariz e se acumulava na minha boca. Ri até perder o folego, enquanto os homens arrastavam o seu líder para longe. Minha cara era uma ruína sangrenta, mas meu espírito estava cheio dos deuses, e nada poderia me deter.

[ um golpe de sorte]

__ Vamos lá, coronel! Me mate! Me mate antes que eu conte a verdade a eles!

O Pastor, aque àquela altura já havia recobrado o raciocíno pelo cheiro do sangue, aguçou os olhos e os ouvidos, buscando uma posição privilegiada em meio ao caos... os outros simplesmente me olhavam, estupidificados pela cena que testemunhavam, horrorizados pelo espetáculo que eu promovia. Apenas Sérgio continuava trabalhando, imperturbável, fervendo as flores em uma panela.

__ Vamos, coronel... Mostre pra eles quem você realmente é! Você queria mesmo se livrar dos "insubordinados", e eu sou a desculpa perfeita. Não é isso? Você vai ter coragem de NEGAR??

O Coronel parou de se mover, mas os homens não o largaram. Seus olhos mudaram, o rosto se congelou, tentando alcançar novamente a frieza que tinham antes... Mas não podia.

Já era tarde demais para ele também.



__Por quê você não diz logo que foi o senhor mesmo quem envenenou esses putos!? Vamos!! Por quê não admite o que você tentou me obrigar a fazer ontem a noite?

Todos os olhares estavam sobre mim agora. Quando Torres soltou o coronel, o homem partiu como uma bala na minha direção, disposto a me liquidar. Eu abri os braços, e apostei todas as minhas fichas. Tinha que ir com aquilo até o final. um golpe de sorte.


__ Vai me matar antes que eu conte a verdade!? Por quê você mesmo não conta para eles o que me disse ontem à noite, atrás do caminhão? Por quê não conta o preço que me exigiu para me deixar ficar aqui?!

Senti as mãos do coronel se fechando sobre a minha traquéia, e o ar parou de passar. Meus olhos encontraram os dele uma última vez, mas o que eu via era desespero. O suor que pingava de sua fronte tinha cheiro de medo. Um cheiro forte o bastante para ser percebido pelas naridas dilatadas do crocodilo.

__ Mauro diz a verdade. Eu ouvi tudo!

João Paulo cantou com sua voz de pássaro, alto o bastante para que todos no acampamento ouvissem. Quanto a mim, senti os dedos do coronel ficarem trêmulos, e vi também sua expressão quando a alma se quebrou.

Pelos deuses, aquilo era bom demais.

O Pastor continuou:

__ Eu ouvi ele pedindo pro Mauro matar os três com veneno, e ouvi ele falar que não. Eu ouvi tudo, e implorei ao Senhor que mudasse os pensamentos do Coronel Carlos... Ah! Senhor! Deveria ter impedido isso, mas tive medo! Como fui fraco!

__ E eu ouvi quando o estrangeiro tentou impedir eles de pegar a garrafa. - Era o Sgto. Torres quem falava, enquanto caminhava em direção ao coronel. Ele nem ofereceu resistência quando o brutamontes o ergueu pelos braços.

__ Torres, eu... isso é um motim!?
__ Vamos coronel... Rodrigo, me ajude com isso.
__ Torres! me larga! isso é uma ORDEM!

Mas as ordens chegavam como uma voz baixa e distante. A canção hipnótica do Pastor já enchia os ouvidos do sargento.

Rodrigo se juntou a eles, esperando que as ordens do novo comandante. Mas ela não veio.

__ Ainda não, Rodrigo. - era a voz do Pastor que saia da boca do sargento.
__ Mas vocês... isso não...
__ Coronel, acho que o senhor mesmo vai querer fazer isso. Como vai ser?

Compreendendo que chegara ao fim de sua estrada, o Coronel recuperou sua compostura para encontrar a morte. Era de novo o homem que já tinha sido, e a iminência do fim já não lhe causava nenhum medo.

__ Eu mesmo faço. Tragam a minha espada.
__ Vai ser aqui mesmo?
__ Não, não. Se puder, quero fazer isso sozinho.

E o coronel se afastou para morrer, levando consigo apenas sua honra e sua espada.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Má Companhia, II



Quando Matsumoto terminou o interrogatório, eu estava cansado demais para pensar num plano de fuga ou fazer qualquer coisa além de me arrastar para um canto escuro e apagar. Estava ferido, exausto, e faminto, e não tinha certeza sobre o paradeiro da valise com minhas últimas provisões.

Se as coisas podiam piorar?
Sempre podem.

Haviam estendido uma coberta na carroceria, onde o Pastor João Paulo e suas esposas - Cecília e Míriam - faziam uma oração. No entorno da Scania havia outras quatro barracas-iglu do exército, mas, exceto pela "sagrada família" e pelo coronel, todos se aqueciam em torno de um tambor metálico fumegante, onde algo cozinhava dentro de uma panela.

Tentei ser positivo, e fiz o possível para demonstrar toda a confiança e honestidade próprias a um recruta não-voluntário da "Resistência" - o que quer que essa porra significasse. Estendi a mão boa em uma saudação, mas poucos se dignaram a me dirigir um olhar. Torres, o sargento corpulento que horas atrás havia enfrentado o mar desmorto para salvar minha vida, simplesmente se levantou e me deu as costas enquanto eu me aproximava do fogo. Wiliam esboçou um sorriso opaco, que morreu assim que Rodrigo o mirou com seus olhos de psicopata, sem parar de amolar a enorme faca kukri que tinha nas mãos.




Pedro Metralha fumava o meu maço de luckies vorazmente, prendendo o riso de escárnio e o cigarro nos dentes encavalados. Mas que filho da puta... eu simplesmente não podia permitir que ele fumasse aqueles luckies.

***

Eles estavam comendo as minhas últimas provisões - ervilhas, salsichas e pêssegos para a sobremesa. Os mais escrotos dentre eles comentavam como a comida estava boa, mas me segurei. Miranda cuspiu uma das esferas de flechette na mão e resmungou:

__Mas que merda, hein, Neanderthal! você é tão fodido que até as suas ervilhas levaram chumbo!

O casal ria da minha desgraça, seguido por seu cachorrinho ressentido. Mas naquele momento eu soube que eles estavam condenados. Minha mente foi tocada pela luz da compreensão - e desta vez era a luz vermelha da morte.

[O convidado prudente tem sua maneira de tratar
com aqueles que o ridicularizam a mesa:
Ele sorri através da comida e não parece ouvir 
as bobagens faladas por seus inimigos]

__ Onde está minha bolsa? - fiz um esforço tremendo para não deixar o ódio explodir, o que seria simples suicídio. A voz passou rascante pela minha garganta, mas saiu baixa e hesitante, como eu planejava.

  [Você precisa ficar frio

__ Está aqui comigo. Procurei uns medicamentos nas suas coisas, mas não encontrei nada que preste. Achei que não se importaria de compartilhar a sua comida, já que salvamos a sua vida e tal, mas, de qualquer maneira, se essa ferida infeccionar, e sem antibióticos, você não vai durar muito. Deixa eu ver esse braço.

Era Sérgio Vidal quem falava... o dentista se mantinha incrivelmente balofo, mesmo com a escassez de comida dos dias atuais. Sentei ao lado de Pedro, o Lacaio, enquanto Sérgio lavava o meu ferimento e tentava abri-lo com uma pinça e uma tesoura. Estava inchado, dolorido, mas aguentei firme enquanto ele extraia um caco de vidro inacreditável da ferida.

__ É quase certo que isso vai infeccionar. E se infeccionar, você já era. Ah! nós estamos sem sabão.
__ Que seja... - eu gemi. __ Só me diga que eles não roubaram o meu vinho.  

[Seja frio. Seja muito frio]

__ Bom, eu pensei em ficar com a garrafa em pagamento pela consulta... mas se você faz tanta questão, que se foda. Não quero piorar as coisas para você. Seria até antiético.
__ Pode me devolver minhas paradas agora? Se eu viver o suficiente, pagarei pela sua consulta.
__ Ahãm. Pode pegar. Mas você vai notar que suas armas foram confiscadas até o coronel decidir o que fazer com você.
 
 ***

Eu dormi no chão duro, enrolado na manta suja e usando a valise quase vazia como travesseiro. A garrafa de Cabernet estava precariamente escondida sob a valise.

[Seja frio]
Eles vieram à noite, se esgueirando vorazes como ratazanas saídas das sombras. Acordei, mas permaneci com os olhos fechados, enquanto eles me cercavam. Me preparei para o impacto, e como o previsto, ele estourou de novo nas minhas costelas.

__ Cadê a birita, Neanderthal?
__ Vocês não se satisfazem em roubar meus cigarros? Vão roubar o meu vinho?
__ Cala a boca, porra. Cadê a birita? - era a voz de Pedro Lacaio. __ Eu ouvi você falando que tinha uma garrafa de vinho, seu otário.
__ Ninguém aqui vai dar a mínima se você morrer, Neander. Aliás, amanhã eu vou votar pela sua morte. - O Metralha relinchava ameaças, e eu sentia o seu bafo de ódio.
__ Se eu der a garrafa, vocês vão parar? Vão parar de me torturar e de me roubar?
__ Não, mas você pode sonhar com isso até amanhã. Pelas minhas contas, você já é um homem morto.
__ Não vou... - as palavras morreram em meus lábios quando a mão pesada me acertou na cara. Rolei para o lado, me agarrando a valise e revelando a garrafa.

[Frio]

__Estou avisando para devolverem a minha garrafa - falei alto.
__ Cale a boca, estrangeiro. Não está achando que eu vou te salvar dos mortos de novo, está? - era Torres, que estava de vigia naquela noite.
 
Os ratos se afastaram na escuridão, ao encontro do seu destino.
Voltei a dormir.
Fazia muito frio.

 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Má Companhia



O fogo queimou por um longo tempo, e as chamas engoliram tudo o que estava em seu caminho.
Prédios, placas, árvores, casas, carros, corpos - o fogo devastou tudo, até que a cidade fosse reduzida a ruínas de cimento negro e aço retorcido.

Tudo queima.

Por nove dias e nove noites a cidade ardeu em uma pira, mas, depois do incêndio, a cidade estava pura. Os caminhos que tomarão as almas que também arderam é desconhecido para mim, mas ao menos os corpos foram honrados. Não precisarão mais vagar pelas ruínas, sedentos, famintos, sem ter para onde ir. O bem que fiz ao incendiar a cidade foi maior do que o mal que causei, e ninguém pode desejar nada melhor do que um funeral digno nos tempos do Ragnarök.

Por nove dias e nove noites eu também queimei, e, assim como a cidade, também fui purgado pelo fogo. Agora, com um prato de sopa quente e diante da fogueira, eu me recordo do sofrimento sem dores ou remorsos.

***

__ Você não está vendo?! Ele foi MORDIDO! Porra, Sérgio, ele tá infectado!
__ Isso não é uma mordida, porra! -  eu sou um DENTISTA, e devo saber alguma coisa sobre mordidas!!! este é um ferimento circular num braço imundo, e só! você já viu um zumbi com boca de cu e dente de vidro? então, NÃO é uma mordida! mas você está certa numa coisa: essa merda vai infeccionar e esse cara tá fodido, de um jeito ou de outro.

Miranda saiu pisando duro e foi conspirar com os dois Pedros - o mecânico e o "Metralha". Fui me acocorar num canto da carroceria, tentando não encarar nenhum deles e evitando qualquer tipo de contato - as barras na carroceria me remetiam à cadeia, e, por acaso, eu sei como me portar quando entro em uma cela. Fechei a face e a mente, mas meus pensamentos foram capturados por alguém que tinha um faro impressionante para as fraquezas humanas. Os outros tripulantes me ignoravam completamente.

__Esta é a água da redenção. Beba, meu filho.

Tomei a garrafa pet de suas mãos num impulso, imaginando que o pastor pudesse me obrigar a beijar uma bíblia antes de saciar minha sede. Depois de um dia de horror e jaggermeister mal dormido, este seria um argumento perfeito para uma conversão pública e instantânea. Mas não queria fazer isso ainda.

__ Tua sede não é de água ou de alimento, é sede de Espírito. Você deseja viver, meu irmão. É esta a sede que te consome. Beba, filho. Beba à vontade.

E eu bebi, e senti a água descendo pela garganta como se jorrasse do rio do Éden. Eu bebia como um desesperado, a água escorrendo pelo queixo barbado e imundo. Ouvia o som da catequese se aproximar e se afastar, mas não prestava atenção às palavras suaves e ululantes nos meus ouvidos - a voz do sacerdote era penetrante e hipnótica. Contudo, havia algo de errado nele... os olhos tinham uma marca de dureza que não me deixava enganar. Não piscavam, e seu sorriso surgia do nada, de uma forma que me pareceu inverossímil desde o início - um animal que mantém os dentes brilhando mesmo no fim do mundo só poder ser um predador. Ele falava sem parar com sua voz de pássaro, mas os dentes brancos e os olhos imóveis denunciava a natureza do crocodilo.


 [Aqueles que tem visto e tem sofrido muito,
e sabem as maneiras do mundo que tem percorrido,
podem dizer que espírito governa
aos homens que encontram]


__ A  única água que pode saciar a sua sede é a água do Espírito. Beba à vontade, filho, este é um manancial inesgotável de vida. Beba mais um pouco, hoje a tua sede será saciada.

E eu bebia mais, até não poder aguentar. Era a primeira água que eu bebia em mais de 24 horas.

__ Posso fumar um cigarro? - Tentei parecer natural, mas a verdade é que o homenzinho estava me colocando medo, de verdade. Preferia que deixasse a água e fosse embora com a fumaça, mas ele parecia determinado a me falar do seu deus e de outras bobagens, antes de me conceder a dádiva de fechar os olhos por uns minutos e recuperar o fôlego.

Mas não houve descanso.  Nem sequer pude terminar meu cigarro.
Miranda e seu pittbul não permitiram.

__ Aí, JP. O Coronel quer ver o Neandhertal que nós capturamos. Levanta, Neandher!

Num primeiro momento ignorei a voz imperativa de Miranda, mas não por falta de ímpeto dela ou por algum orgulho que eu pudesse preservar na minha condição - algo na forma como todos me olhavam me diziam que eu estava preso, e minha estratégia começava a ficar clara a medida que me dava conta desse fato.

Assim como no xadrez, entendi que ceder a posição significaria perder espaço - e eu não tinha conseguido mais do que sete murros e um litro d'água. Encarei a garota com o cigarro entre nós, e vi quando ela começou a sentir o meu peso. Os olhos dela iam arriar, mas o Metralha me deu um chute nas costelas, e este era um argumento completamente diferente. Quando me levantei, Pedro Metralha tomou o maço das minhas mãos, ao mesmo tempo em que Miranda me puxava pelo braço ferido. Gritei de dor, e deixei o cigarro cair - eles me atacavam como uma matilha, enquanto o pastor observava, finalmente em silêncio. Pedro mecânico fumou o toco que restava do meu cigarro, o que revelava seu lugar inferior na hierarquia daquele bando: se tivesse certeza de que os companheiros compartilhariam a pilhagem, teria esperado um cigarro inteiro. Mas o homem se limitou a olhar faminto para o maço de cigarros e para a mulher.

Aquele era um elo fraco. 

***

Fui empurrado para a cabine da scania através de um teto solar com barras de metal. O piloto da máquina de massacrar desmortos é o homem franzino a quem chamam Wiliam. Carlos Matsumoto estava no comando, e sentava-se a sua direita. A minha primeira impressão sobre ele foi de que o coronel não era um ser humano, mas sim um cyborg: suas feições eram chapas de aço forjadas a frio.

__ Você está aqui desde o início? Estava aqui, nesta cidade?
__ Sim. Me chamo Mauro. Muito obrigado pelo resgate, mas...
__ Vamos deixar as apresentações e os agradecimentos para depois. Responda. Preciso das coordenadas para sair daqui.- eu tentava não encará-lo, mas era impossível. __ Diga para onde você estava indo. Mostre onde fica o seu refúgio.
__ Eu estava fugindo sem rumo, sem nenhuma direção.
__ Responda o que quero saber agora.

Não menti quando disse que não sabia para onde estava indo. Nas últimas doze horas, não pude enxergar nada que estivesse mais de um passo adiante - mas essa resposta não servia para o Coronel, cuja voz agora mostrava o gume afiado. Eu não podia entregar o mapa com os meus refúgios e anotações. As ruas principais estavam muito bloqueadas, mas eu conhecia um caminho que me daria algum tempo.

[sábio não é quem nunca está calado
e balbucia palavras sem sentido:
um linguarudo eloqüente que segue falastrão,
canta a seu próprio dano]


__O que sabe sobre este lugar aqui, à margem do rio e da rodovia? - o coronel apontava um mapa, mostrando o local afastado na parte alta da cidade, o mesmo que eu pensava em informar. Não tinha nenhuma intenção de revelar o meu próprio mapa ou o meu verdadeiro refúgio, mas o cretino leu os meus pensamentos, ou, mais provavelmente, seguiu meus olhos quando se fixaram na área da represa enquanto ponderava se deveria ou não revelar minha principal fonte de água. Pelos deuses! Eu não estava lidando com simples psicopatas... Se eu não o satisfizesse com minha próxima resposta, ele encontraria um meio de extraí-la.

__ É a represa. Fica do outro lado da cidade, e podemos contornar por fora do perímetro urbano.
__ Isso é óbvio. Fale o que quero saber.
__ O caminho está limpo, mas os mercados também. Tem poucas casas lá. E muitos mortos, como em toda parte.
__ Mostre o caminho para o Wiliam. O caminho que você ia tomar.
__ Se é o que você quer, tudo bem, mas...
__ Mostre o caminho.- o coronel falava baixo, mas agora soava como uma espada saindo da bainha.

As coisas estavam começando a funcionar. Eles se revelavam, enquanto meus pensamentos permaneciam ocultos nas sombras.


***

Wiliam seguiu minhas orientações, mas na metade do trajeto eu já não era necessário. Ele era mais do que um piloto de fuga - sabia ler o mapa e também onde bater nos carros. Também sabia como massacrar o maior número de zumbis que fosse possível. Quando tinha pista limpa, Wiliam fazia soar a buzina de cargueiro, e os desmortos eram atraídos para uma segunda morte sob toneladas e toneladas de aço. O rapaz era franzino, mas tinha sua forma de ser pesado.

__ Parece que não, mas eles são todos iguais. Repetem sempre o mesmo movimento, e todos copiam o que o primeiro faz. A gente tem que matar o máximo possível, é nosso dever.
__ Mas eles seguirão a buzina - o rapaz deu de ombros. Ele escolhia o perigo.
__ Eles são muito burros. A intenção é essa. Esse é o trabalho da Resistência.
__ Wiliam, a partir deste trecho não devemos atrair mais atenção - o coronel cortou nossa conversa. Vire à esquerda, e depois suba à direita. Estamos chegando ao nosso objetivo.
__ Você é que manda, capitão. Vou meter o pé e deixar eles pra trás.

A carreta começou a acelerar com um rugido, rápido demais para um veículo daquele tamanho, muito mais rápido do que deveria considerando que iamos à margem do asfalto congestionado. Os outros sobreviventes se agarravam às traves da gaiola de ferro. O Coronel ditava as coordenadas, e Wiliam às seguia, margeando a estrada por fora. Mesmo com o eixo reforçado, os amortecedores sofriam com o peso da blindagem, e parecia que a carreta ia se partir ao meio. Alguém na carroceria pediu que Wiliam fosse mais devagar pelo interfone, mas o Coronel achou por bem ignorar. Decidi não questionar, e manter o silêncio ao longo do percurso, enquanto Matsumoto me sondava com os olhos semicerrados - usando a visão periférica, sem me encarar.

Chegamos às margens da represa na escuridão da noite sem lua - ainda víamos o brilho do fogo, mas estávamos muito distantes. A scania parou, e os faróis de milha instalados na carroceria varreram a área. Não encontraram nenhum desmorto nas proximidades, só uma meia dúzia de cambaleantes entre as casas, do outro lado do lago. O grupo começou a descer da carroceria e a demarcar um perímetro com balizas de metal ligadas por arame flexível, com dezenas de latas presas em fileira. Eles pareciam saber o que estavam fazendo, e bem demais para que eu arriscasse uma fuga imediatamente. Notando minha atenção, o Coronel se dirigiu a mim em um tom diferente, quase como numa ameaça amistosa:

__Não podemos confiar apenas nos sensores de movimento. As latas parecem um improviso, mas funcionam. - acho que ele ia dizer algo como "você está seguro aqui", mas mudou de idéia. __Me acompanhe, porque precisamos falar sobre algumas coisas.

O coronel caminhava em direção a margem do lago, tão logo o perímetro foi demarcado e declarado seguro pela equipe de reconhecimento. Eu apenas seguia. Quando percebeu que havia dominado o rumo dos meus passos, virou-se rápido como uma serpente, sem deixar espaço para hesitação

__ Onde está o resto do seu grupo?
__ Eu não tenho grupo. Estou por conta própria.
__ Sozinho? Como espera que eu acredite que você sobreviveu sem nenhuma ajuda quando nós perdemos vários companheiros, com todas as armas e treinamento que temos? É essa a estória que quer me contar?
__ Mais fácil sobreviver sozinho do que carregando nas costas o bando de malucos como os que você tem na caçamba. Pelo que vi, é um milagre que ainda não tenham se matado.
__Você tem a língua afiada, mas sua têmpera é fraca. O que fazia antes da epidemia?
__Um tipo de agronegócio.

O coronel pesou minhas palavras, sem alterar sua expressão. Por fim, vi algo como um sorriso surgindo nos lábios finos e apertados, e então encerrou a conversa:

__ Você fala demais, Mauro, mas não responde as minhas perguntas. Isso vai mudar.
__ Olha, eu não sei o que mais você quer saber, não tenho o que inventar, e também não tenho por que mentir. Se não se importar, gostaria de pegar meus bagulhos e cair fora.
__ E depois trazer o seu bando de saqueadores até nossa posição? Acho que não... Agora você faz parte da Resistência. Vá descansar, por enquanto. Amanhã você será avaliado e alguém explicará a sua função na equipe. Não tente fugir e nem faça nada idiota. Acredito que você já sabe que meu pessoal está de olho em você.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Mar Desmorto, III

Dia 11 de junho de 2015 - 3º ano da Era do Apocalipse


Finalmente cruzamos a cidade e ainda estamos vivos, graças a Deus. Tenho muita fé e oro todas as noites para que o pior de nossa provação já tenha passado, e que Ele se apiede de nós. Tivemos uma semana de grande sacrifício nas ruínas de Juiz de Fora. Apesar de tudo o que nos aconteceu, conseguimos encontrar bastante alimento, água, e as peças que o Coronel Matsumoto vinha procurando tanto. Também conseguimos muitas armas e munição para o Exército de Cristo, que já estavam quase no fim. Graças a Deus por isso também, porque sem  armas seria impossível continuar realizando a Sua obra.

Há dois dias perdemos nossa irmã Tatiana. 
O Coronel insistiu muito para entrarmos na antiga Zona de Segurança, porque ele acreditava que a Resistência ainda estivesse ativa... Logo que nós chegamos, percebemos que já estava tudo acabado, mas o Coronel insistiu que deveríamos entrar. Foi assim que Tatiana foi mordida. Sei que foi um choque muito grande para o nosso líder ver seus camaradas vagando pelo quartel sem as almas, ainda segurando as armas e vestindo as mesmas fardas que ele e os rapazes (e agora Miranda também) ainda usam. Creio que foi isso que o fez perder a razão. O pobre homem ainda acreditava que o Comando da Zona da Mata estava resistindo, e que só não estavam respondendo ao nosso sinal por problemas com central de comunicação. Achava que ainda podiamos ajudá-los, mas, que Deus me perdoe, eu sabia e o alertei que não havia a mínima chance, logo que os vi aquela quantidade de mortos tornados à vida se aglomerando como uma legião do Inferno no entorno da antiga base.

Que deus me perdoe, mas a culpa foi dele.

Tatiana estava procurando por um determinado armazém, conforme o Coronel lhe havia ordenado. Mas ela não encontrou, e, quando voltou, vimos que tinha sido mordida perto do pulso. No início ela negou, dizendo que tinha caído em cima de uma das cercas de arame que marcavam o perímetro. Mas, depois, quando viu que não tinha mais como continuar negando, começou a chorar em prantos e acabou confessando que tinha sido mordida por um deles. Após nossa última refeição juntos, ela se despediu de cada um de nós, e se ajoelhou, ainda chorando muito, enquanto Rodrigo se posicionava atrás dela. O golpe foi rápido e forte, e creio em Deus Pai que foi uma morte misericordiosa. Ela não sofreu nada perto do destino que, de outra forma, esperava por ela - a menos que não tivesse sido mordida, e disso o Coronel Matsumoto sabe muito bem. Foi por isso que o vi limpando discretamente uma lágrima na hora do funeral - algo que nunca tinha visto ele fazer, apesar de tantos que já perdemos.

Depois da alma libertada, queimamos o corpo com bastante gasolina - mesmo depois de Pedro, o soldado, ter protestado que deveriamos poupar o combustível. Minhas esposas improvisaram um crucifixo onde escrevemos o nome da nossa irmã Tatiana. Cantamos um louvor juntos, e pedimos a Deus pela alma imortal de nossa querida irmã falecida. Permita o Senhor que ela descanse em paz.

Ainda tiveram o sangue frio necessário para vasculhar a base, e por isso não devo me queixar, porque foi onde encontramos as armas que agora são nossa segurança e reforçam a garantia de que o Exército de Cristo vai triunfar sobre a Legião. O que o Coronel pretende com as peças que pegou é algo que ainda preciso descobrir, mas isso virá com o tempo. Estávamos terminando de carregar o caminhão quando vimos o fogo na cidade, e tivemos que partir com a máxima rapidez, antes que a passagem se tornasse impossível dentro do perímetro urbano.

Alguns de nós começaram a ficar impacientes quando o caminho que seguíamos, outra vez, estava bloqueado por carros. Nosso veículo, graças a Deus, é muito forte, mas, mesmo assim, eram muitos carros para empurrar. Foi minha amada Míriam quem primeiro viu o sinal de fogo no céu, e depois todos vimos que era um homem quem sinalizava. Ele estava desesperado, e quando o caminhão começou a manobrar ele veio correndo em nossa direção, se lançando por cima dos carros amontoados no meio da pista enquanto o incêndio já tomava uma boa parte da cidade. Ele era a  própria face do terror, e não teria conseguido nos alcançar se o Sargento Torres não tivesse saltado do caminhão para ajudá-lo. É um homem muito bom, o Sargento Torres - oro todas as noites para que aceite a Palavra e venha lutar sob bandeira do Cordeiro.

Assim que conseguiu subir, Pedro Rocha e Pedro, o soldado, foram tirar as armas do recém chegado. Por isso não posso culpá-los, depois de tudo o que temos visto e ouvido ao longo deste último ano em que sobrevivemos juntos. Era só por uma questão de segurança, mas, quando Miranda se juntou a eles, ficaram mais cruéis, e começaram a dar vazão a raiva que vinham reprimindo em seu peito após a perda de tantos companheiros e entes queridos. Deixei que dessem curso a essa ira inicial, até que tivesse a oportunidade de intervir. Assim que pude, foi o que eu fiz.

O homem estava terrívelmente abalado, enrolado em um cobertor sujo com a face desgrenhada coberta de fuligem preta. Parecia não cortar os cabelos ou se barbear desde os primeiros dias do Apocalipse. Sua pele estava preta, como se tivesse estado no meio do fogo e escapado por puro milagre - Deus é grande e tem um propósito para cada um. Quando perguntei pelo seu nome, ele vacilou, e só quando insisti pareceu se lembrar. Não sei dizer o porque, nem posso julgar seus motivos, mas algo me diz que ele mentiu. 

Foi então que Miranda voltou para junto de nós e percebeu que o homem estava ferido. Apontou o fuzil para o pobre infeliz, e estava prestes a disparar contra a sua cabeça quando o Doutor Sérgio se prontificou em examinar o braço do rapaz e disse que, graças a Deus, ele não foi mordido.

__ Posso não ser médico, mas entendo de dentes. Esta não é uma mordida, mas de qualquer jeito deve infeccionar. Além do mais, este curativo está uma merda. [peço perdão por escrever esta palavra, mas foi o que ele disse]

O Dr. Sérgio tem sido fundamental para a nossa sobrevivência, e deve ter sido um excelente dentista. Sem ele, acredito que a maioria de nós já estaria morta. Apesar de se dizer ateu e dos olhares indecentes com que persegue minha amada Cecília, acredito que é uma boa alma. Já conduzi ovelhas desgarradas antes, e, com o tempo, tenho fé que o milagre de Jesus vai acontecer em sua vida também.

O homem que resgatamos disse ser natural de Juiz de Fora. Assim que soube disso pelo interfone, o Coronel Matsumoto mandou que o homem fosse levado à cabine. Pedro e Miranda o conduziram, meio aos empurrões, até o teto solar, e eu percebi quando a jovem o segurou pelo braço ferido apenas para causar dor. Preciso encontrar um tempo para conversar com essa moça, antes que a influência do seu novo namorado acabe por corromper ainda mais profundamente sua alma. Acredito que, apesar da frieza com que começou a tratar as perdas dos nossos, ela ainda não se recuperou da morte de Davi, e está tentando bloquear a lembrança e preencher o vazio em seu coração da maneira errada. Há tão poucas almas para cuidar, mas de quantos cuidados elas precisam, ó Senhor!

Com a ajuda do recém chegado, o irmão Wiliam encontrou uma rota relativamente livre, por onde nosso veículo conseguia passar. Neste momento em que escrevo já passa da meia-noite, e o Coronel continua interrogando o homem que diz chamar-se Mauro, enquanto os demais terminam de montar o acampamento às margens do rio. Não estou certo de que seja o mais seguro, e continuarei dormindo com minhas esposas na carroceria blindada. É o melhor para nós.

Que Deus nos proteja dos perigos desta noite.                                                                 

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Mar Desmorto, II




O principal cruzamento da cidade se converteu em uma ilha de automóveis batidos ou abandonados às pressas logo nos primeiros dias do apocalipse. Hoje, três anos depois, eles são a prova arqueológica de que as regras da civilização sucumbiram à selvageria longamente reprimida da nossa espécie. Em fuga desesperada, as  pessoas abandonaram qualquer noção de equidade ou cooperação. A lei do mais forte prevaleceu, e, escravas dessa regra, as sociedades humanas foram devoradas por si mesmas.

Carros, ônibus e caminhões se entulham no coração viário da cidade: e em todas as principais rodovias, pelo que soubemos antes das estações de rádio caírem. Eram artérias entupidas, através das quais nada fluiu, e todos os que seguiram o plano de evacuação ditado pelo Governo Provisório tiveram que abandonar os veículos ou morreram em seus carros.

"... mantenham seus veículos abastecidos e dirijam até o abrigo mais próximo. Todos os que se refugiarem nos abrigos receberão alimento, agasalho e uma dose do soro imunizante. Todos devem deixar as suas casas imediatamente. Lembre-se: não serão admitidos animais de estimação..."

Não havia espaço para todo mundo. Não havia espaço nos hospitais. Não havia espaço para mais ninguém nos abrigos improvisados nas escolas e estádios, tampouco nas "zonas de segurança" organizadas pelas Forças Armadas. Logo, também não haveria comida, e as pessoas começariam a lutar entre si. Quando os mais fracos se transformaram na multidão dos mortos-vivos, os mais fortes já estavam reduzidos à fome ou ao canibalismo. No fim, os que não foram mordidos pelos zumbis morreram comidos por seus concidadãos.
  
***

A horda dos desmortos avança como uma onda que toma ambas as avenidas. Eles fogem da pira colossal que engole a cidade. Continuo subindo pelos chassis, tentando chegar ao centro da ilha, onde talvez demore mais tempo até ser devorado. Ainda sem acreditar, vejo a imensa máquina metálica arrastando carros e rompendo a maré desmorta com seus para-choques e placas de aço, suplantando os gritos hediondos com a buzina de cargueiro. Quatro faróis de milha fixados no teto da cabine de carreta iluminam a dianteira, enquanto dois holofotes móveis na carroceria vasculham as laterais.

Só que eles estão longe pra caralho. O que vou fazer é algo desesperado, mas não há tempo para ponderações: eu preciso arriscar, e minha melhor chance está nos Cienfuegos Maggia que trago na valise.  

Em alguns segundos começam os estouros. Seis tiros de chamas amarelas, vermelhas e azuis brilham no céu escuro - mas o barulho e a pirotecnia atiçam os mortos-vivos, que agora se arrastam por entre os carros na minha direção. Talvez minha atitude impulsiva tenha sido mais do que vã - talvez tenha sido minha estupidez final. Eles vão me deixar para trás.
***


Um dos holofotes me deixa cego por um instante. Ouço uma voz de comando, e a carreta muda o seu curso, esmagando brutalmente os desmortos contra as carrocerias. Estou correndo o mais rápido que posso, mas eles ainda estão a cinquenta metros de distância. Continuo meu caminho por entre os carros abandonados, agora mais espaçados, evitando ao máximo tocar o chão - zumbis mutilados tem uma predileção por se esconder debaixo dos veículos. A buzina soa impaciente, mas estou quase chegando. Saco meu machado para correr os últimos dez metros pelo asfalto, pois há vários deles no meu caminho. Tomo um último fôlego enquanto traço mentalmente minha rota e determino o meu curso de ação.  

A carroceria é alta e reforçada com chapas de aço, e na parte de dentro é  estruturada por uma espécie de gaiola montada com barras de metal. É uma carroceria curta, porem elevada, montada sobre um único eixo e adaptada à enorme cabine de scania. Os desmortos se aglomeram batendo com os punhos cerrados no metal, mas dois homens usando armas semelhantes a roçadeiras reduzem os zumbis que se aproximam a meras carcaças esquartejadas no asfalto. O mais alto deles, vestindo os farrapos de uma farda do exército, desce para o chão e vem abrindo um círculo de carnificina e vísceras espalhadas. Eu corro em sua direção derrubando os desmortos no meu caminho, lutando desesperadamente para chegar até a escada de metal soldada na lateral da carroceria.


***

Subo rapidamente, com o veículo em movimento, e estendo a mão para ajudar o militar com a roçadeira letal. Antes que eu consiga agradecer pela minha vida, sou cercado por dois homens de aparência hostil.

Um deles é negro e inflexível, com a face dura e a respiração pesada. Ele se aproxima com um cano de ferro nas mãos. O outro é caucasiano, tem os cabelos raspados e veste uma farda; este vem com um olhar maligno e com os punhos cerrados. Levanto a mão para saudá-los, mas o homem em traje militar me recebe com um soco no fígado.

__ Tirem as armas dele.  

Enquanto sou rendido e desarmado, a mulher que deu a ordem surge entre os dois. Ela deve ter pouco mais de vinte anos, e veste uma jaqueta do exército grande demais para o seu tamanho. Apesar de ter a pele e o corpo delicado de menina bem nascida, agora seu semblante está marcado com as indeléveis cicatrizes dos que sobreviveram ao fim da própria espécie.

A carreta dá solavancos enquanto abre caminho entre os mortos. Todos se seguram nas barras da gaiola de ferro - há mais quatro pessoas no fundo da carroceria, além de outro soldado, vestido com colete à prova de balas e manejando outra arma-roçadeira em seu posto de combate. O homem que me resgatou também retorna ao seu posto, ignorando os demais, enquanto eu tomo fôlego para responder à enxurrada de perguntas da mulher. Antes de receber outro estimulante murro no fígado, sou salvo pela intervenção de um cavalheiro com a voz clara e bizarramente tranquila.
 .  
__ Soltem ele. Miranda, eu e o Dr. Sérgio assumiremos a partir daqui. Vocês dois podem retornar os seus postos.

O homem de pedra obedece imediatamente e assume um dos holofotes, mas o soldado caucasiano hesita por um instante, me encarando. Sustento seu olhar maligno, e vejo nele uma raiva sem freios. Mais tarde terei que pensar em uma maneira de lidar com ele. Aí está um homem que tem sede de sangue.

 __ Pedro, eu e o Dr. Sérgio nos encarregaremos do recém-chegado. Retorne ao seu posto.

O soldado obedece, diante do sorriso de aprovação daquele que se aproxima.

É um cavalheiro de baixa estatura e de pele parda, beirando os cinquenta anos. Tem os cabelos e a barba bem aparados, e está trajado com uma camisa de botões bastante limpa, embora amarrotada e um tanto sofrida. Seus gestos são contidos, a fala é pausada. Ele parece absurdamente NORMAL - exceto pelos olhos, que quase não piscam. O outro - a quem se referiu como Dr. Sérgio - é o exato oposto: tem aspecto sujo e desgrenhado.

__ Desculpe meus companheiros, eles não dormem há algum tempo e estão bastante nervosos.
__ Eu notei.
__ Eu me chamo João Paulo, pastor de almas e servo de Cristo. Qual é o seu nome?

Por um instante permaneço mudo, com a mente vagando por sendas estranhas. Os olhos fixos do pastor vasculham a minha alma.

__Diga, filho. Qual é o seu nome?

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Mar Desmorto


 
Estou completamente paralisado, com as pernas e o maxilar travados de terror. Nunca vi tantos assim. A cacofonia produzida por mil traquéias decompostas é como uma onda que se agiganta e vai inundando toda a cidade com uivos e gemidos inumanos. Na verdade, nenhum animal vivo poderia produzir um som tão prolongado e doloroso.





Uns gemem, outros rosnam, mas os piores são os que gritam. O som rasgado e agudo explodindo cheio de ódio atrai os outros, e depois mais outros, que replicam os gritos dos primeiros, de modo que agora são milhares de desmortos subindo a rua larga em meio aos veículos abandonados. É como se o mar avançasse sobre a terra, um mar de carne podre, garras e dentes infectos.

Eles estão em perpétuo sofrimento. Condenados a vagar com os membros semi-rígidos, a cambalear pelas cidades onde antes habitavam - corpos e almas dilaceradas. Não estão nem vivos, nem mortos, mas continuam a vagar como criaturas grotescas, como se ainda fossem o que já não são mais. 

Não confio mais que eu mesmo pertenço ao mundo dos vivos. De fato, a fumaça negra que encobre os últimos raios do sol são presságios de morte. A fuligem do incêndio flutua etérea e se espalha no ar quente, criando uma atmosfera de desespero e irrealidade. Mas este não é um simples pesadelo: é o pior dos pesadelos tornado real.

BUUUMM!!!

Súbito, uma explosão me acorda do devaneio. Um bujão de gás explodiu em um dos prédios, projetando uma língua de fogo e de objetos flamejantes pela janela. Outras explosões seguem a primeira, e eu acordo na sacada do sobrado condenado, cercado por um exército de mortos-vivos em meio a um incêndio colossal. Com as mãos tremendo, procuro um cigarro e o acendo.

Seria um destino ainda pior morrer com o maço tão cheio.

O ar começa a ficar mais quente e mais pesado, os primeiros desmortos já foram engolidos pelas chamas. Passo as alças da valise sobre o ombro, cruzando-a no peito, calculando a melhor forma de distribuir o peso sobre as pernas. O machado está preso no cinto, e a escopeta está no lado oposto. Termino o cigarro e dou uma tragada profunda na bombinha de Aerolin, e sinto a respiração fácil enquanto o coração dispara. Tomo um último fôlego antes de saltar. 

***

Foi um salto aterrador.

Na hora do salto, esqueci a regra fundamental de nunca olhar para baixo. Vi os corpos desfigurados se contorcendo na tentativa de me alcançar, com dezenas de braços e pernas faltando. Eles são uma legião com as vísceras expostas, mutilados uns pelos outros - e unidos pela mesma fome insaciável. Suas bocas se arreganham enquanto eles se amontoam abaixo de mim. Senti quando um deles agarrou meu tornozelo com a mão fria e começou a me puxar.

Também senti o ar desaparecer quando bati com o diafragma contra a marquise de concreto, mas ainda tive fôlego o bastante para impulsionar o corpo para cima e me afastar das mãos gélidas da morte. Tudo o que perdi foi meu tênis de corrida. Hoje à noite eu verei a estrela da minha boa sorte brilhar um pouco mais pálida.

***

Não há tempo para repor as energias. Preciso continuar correndo para ter uma chance de sobreviver.

O sol se põe às minhas costas, eclipsado pela fuligem e pela fumaça. A maré dos mortos vai enchendo a rua na direção contrária à do fogo, e eles vão se empurrando uns por cima dos outros. Os mortos cambaleiam o mais rápido que podem, mas eu sou ainda mais rápido.Vou correndo e saltando por cima das marquises, e assim deixo o grosso da massa desmorta para trás. Mal consigo sentir as pernas, mal vejo onde estou pisando: o chão some sob os meus pés. Salto uma viga por puro instinto, e vejo a parede de um prédio crescendo à minha frente.

Terei que enfrentá-los no chão.

Saco o machado e pulo na  carroceria de um caminhão abandonado. Depois salto outra vez, arrebentando a cabeça do primeiro zumbi antes de tocar o asfalto com os dois pés.

Outros se aproxima de mim pelas costas, e o que está mais próximo vem com a língua pendendo abaixo do queixo e com as entranhas à mostra, ocultas apenas por uma obscena gravata manchada de sangue. Este eu derrubo com um coice, enquanto tomo a dianteira e recomeço minha corrida desesperada pela vida. Um policial usando um traje de batalhão de choque se coloca no meu caminho, ainda com o escudo preso ao braço que não foi devorado. O pescoço, no entanto, está desprotegido, e eu o parto com um golpe usando ambas as mãos. O próximo desmorto se aproxima com os passos vacilantes, e eu o derrubo com um golpe lateral para não diminuir a marcha. Se reduzir a velocidade, serei engolfado pela onda desmorta e tragado para as profundezas do seu mundo.

Eles vem por todos os lados, mas são apenas algumas dezenas. Vou deixando a maré para trás. Um deles agarra o meu poncho, e a garra continua presa mesmo depois que a separo do corpo. A garra sobe pelo poncho em direção ao meu pescoço, como uma aranha macabra capaz de me matar com uma única picada. Me livro dela apenas alguns instantes antes de realizar o seu intento, e acabo me chocando contra uma montanha de carne podre.

O desmorto gigantesco continua de pé, enquanto eu caio sentado no chão. Ele avança com o corpo inchado e os braços obesos em direção a minha garganta. Outros desmortos se aproximam pelas costas com uma rapidez inesperada, talvez animados pela minha queda e morte iminente. Dois zumbis me cercam pela direita. Eu só tenho uma possibilidade de fuga.

Sem me deter mais que um instante no chão, eu rolo para a esquerda e me levanto golpeando o monstro de carne intumescida na altura das costelas. A carne do abdômen se rompe num rasgo surpreendente quando os gases da putrefação se expandem, espalhando as tripas da aberração pelo asfalto. Abro caminho usando os cotovelos e girando o machado em todas as direções, e os mortos vão caindo despedaçados pela ferramenta fiel. Três deles se voltam tentando barrar a minha fuga, então saco a escopeta com a mão esquerda e varro o  caminho com um leque de chumbo.  

BLAM!
       BLAM! 

A rua termina em um cruzamento bloqueado por dezenas de carros abandonados às pressas na avenida central da cidade. Subo no chassis de um Opala e confirmo minha triste suspeita: os mortos vem de todas as direções. À minha frente, porém, vejo um segundo sol branco nascendo em meio a escuridão e ao oceano de cadávers, quebrando-os no meio e rasgando-os como um navio que corta as ondas. O som da buzina de cargueiro provoca a fúria dos desmortos, que gritam em resposta com um ódio que se propaga em todas as direções.

terça-feira, 17 de julho de 2012

A Casa de Virgínia Ortega, IV





Enquanto termino o cigarro e observo a fogueira gigante avançando sobre os prédios, tenho um pensamento desalentador: o fogo não vai demorar a tomar a parte baixa da rua, e terei que lidar com a multidão de desmortos que fogem do fogo na minha direção. Minhas chances de sobrevivência vão se reduzindo minuto a minuto, enquanto os mortos cambaleiam para fora dos edifícios no entorno do sobrado.

A valise com meus suprimentos está toda furada pela rebarba dos tiros de munição flechette, ensopada de sangue e de alguma outra coisa que vaza do interior. Infelizmente, é tudo o que tenho para transportar os víveres que possuo. Apesar de esculhambada e cheia de furos, manter esta velha mala de mão ainda é melhor do que andar por aí com uma trouxa ou a porra de um carrinho de compras.

Abro a valise para acomodar o meu saque. O interior está todo lambuzado de calda de pêssego e tinta prateada - uma das latas de spray explodiu ao ser perfurada pelo chumbo. Não há tempo para contabilizar os estragos.

Preciso ser rápido. A multidão de desmortos está aumentando.

***

A porta que dá acesso à biblioteca está com o ferrolho destrancado, o que me faz adivinhar uma armadilha. Que tipo de maldade me aguarda do outro lado é algo que não posso saber, mas os eflúvios malignos estão por toda parte, e escapam pelas frestas. Posso sentir o perigo, mas não tenho tempo para tomar muitas precauções.

[O Homem que está de pé ante uma porta estranha deve ser cauteloso
antes de cruza-la, esteja atento:
Quem sabe de antemão que inimigos podem estar
 esperando por ele na entrada?]

Eu preciso encontrar o livro.

De novo repito o procedimento de quebrar as dobradiças com o bom e velho machado. A porta cede, mas eu não ouço nenhum som além do zumbido das varejeiras que cortejam o cadáver de Virgínia a poucos metros da porta.

Sei muito pouco sobre o livro que procuro - Virgínia nunca me permitiu que o lesse. Sei apenas que o título é "Morte em vida no Haiti", e foi datilografado à maquina nas semanas seguintes ao Grande Terremoto naquele país. A obra nunca foi publicada, mas conheci Virgínia Ortega, e sei que não era o tipo de pessoa que deposita esperanças em esforços inúteis. O livro deve conter alguma informação crucial sobre a desgraça que devastou a humanidade.

Sei também que foi escrito por um professor de geologia que estava em missão no Haiti no início de 2010, quando aconteceu a catástrofe. Apesar das farpas de ironia que deixava escapar quanto a sanidade do professor, eu notava em sua inflexão vocal um profundo respeito pelo homem. Ela mencionou mais de uma vez  que o velho vivia recluso em um chalé isolado, cercado de relógios de sol construídos para medir horas que os homens comuns desconhecem.

***

O cômodo que abrigava a biblioteca está um caos. Milhares de páginas espalhadas pelo chão me contam que Mauro andou pesquisando literatura estrangeira. Uma pilha de merda seca e páginas sujas emboladas em um canto denotam que ele também vinha usando o cômodo como banheiro, e que, pelo menos, ainda tinha asseio o suficiente para limpar a bunda. O cheiro do mijo impregnado nos tacos de madeira do piso me golpeia como um soco no nariz, que começa a sangrar. 

[adanac manikoush qualalar]

Sinto minhas forças saindo do controle, o sangue escorrendo pela barba. Minha cabeça começa a doer como se estivesse se partindo ao meio. Sinto uma presença poderosa rompendo meu crânio de dentro pra fora.

A estante está repleta de livros, sobre diversos assuntos e em várias líguas. Eu duvido que vá encontrar o que estou procurando. Começo a revirar os livros,  desistindo de folheá-los. Vou procurando sem nenhuma ordem, e então começo a jogá-los de qualquer jeito sobre a escrivaninha. O desespero se infiltra através da minha pele, e eu começo a me descontrolar. 

  [arghuk denmar yosha manikoush]

Minha consciência está fendida. Não reconheço os pensamentos que me assaltam. Sinto minha força sucumbir diante da verdade cada vez mais palpável: eu jamais sairei desta casa condenada!

[ jagha qualalar manikoush] 

Com a súbita percepção da minha impotência, abandono meu autocontrole e me deixo levar pela raiva. Os livros restantes vão todos para o chão, assim como a estante, e eu  volto minha ira contra a escrivaninha cheia de papéis espalhados e objetos inúteis. Desço o machado com força sobre o móvel, e começo a destruí-lo num acesso de fúria rompante e desenfreada. O machado trabalha incansávelmente, depredando livros raros e madeira como se tivessem culpa e vida própria. Meus braços são governados pela força da loucura.
ONDE VOCÊ ESCONDEU A PORRA DO LIVRO!? ONDE ESTÁ A MERDA DO LIVRO SUA DESGRAÇADA!?!? ONDE ESTÁ...

O machado quebra algo que produz um som metálico, algo que se parte e cai no chão.

Uma melodia singela e cristalina pulveriza minha fúria, demolindo minha força de vontade e deixando um enorme buraco que se preenche de melancolia. O dique da ira se rompe em uma cascata de lágrimas que não posso controlar. A caixinha de música executa sua melodia perpétua pela última vez. 

Dentro da caixa, há uma chave dourada de aparência muito antiga. Eu a recolho por instinto e tento recobrar minha consciência.

***

Eu deixo a biblioteca trocando as pernas, desnorteado. Minha cabeça lateja como se tivesse levado uma paulada - o nariz ainda sangra. Eu pego a valise deixada junto à porta, mas a chave dourada eu guardo no bolso - o mesmo bolso onde encontro o mapa amassado e manchado de óleo. É minha última chance.

Contemplo o rosto deformado de Virgínia Ortega pela última vez, e só então percebo que a rigidez cadavérica imprimiu em sua face um último sorriso. Seco as lágrimas e o nariz, e me despeço dela em silêncio.

***

IIIIRRRRRCCGH!!!
                IIIIRRRCCGH!!!!!!
                    IIIIIIIRRRRCCCGGH!!!!!!!!!!!!!!



As critaturas recomeçam o seu grito infernal, e o som hediondo se multiplica em todas as direções, ganhando mais volume conforme outros monstros vão respondendo ao chamado, compondo um coro funesto.

Arrebento a porta dupla que leva à sacada com um chute frontal, e então eu contemplo o exército dos mortos.

São milhares de cadáveres subindo a rua, alguns ainda emergindo das chamas se amontoando com os braços estendidos na direção do balcão.

Eles são milhares. MILHARES!

terça-feira, 10 de julho de 2012

A Casa de Virgínia Ortega, III


Os desmortos vão se amontoando sob a janela - são oito até agora, e mais outros tantos do lado de fora do portão. Eles olham para mim e esticam os braços débeis, mas estou fora do seu alcance. Considerados individualmente, os desmortos não passam de cadáveres podres reanimados, meio burros e com um feroz apetite por carne humana. Eles não são mais perigosos agora do que eram quando vivos - só estão mais famintos. Não é  como se fossem rottweillers ou velociraptors - são apenas gente morta cambaleando como se estivesse bêbada.

Certo, eles tem uma mordida pestilenta capaz de transformar você em um horror em decomposição algumas horas depois de infectado -  mas pessoas vivas também são capazes de coisas desse tipo.

O que eu acho realmente de foder nesses zumbis é que eles destroem a sua vontade de viver de dentro pra fora. Se você fica olhando muito pra eles, ouvindo eles gemendo e gritando... você começa a sentir vontade de desistir, começa a imaginar como é ser um deles.  O que me deixa mais enojado é esse som gorgolejante que eles fazem, como se estivessem sufocando, engasgados no próprio muco...

Eu vomito pela janela.

Os desgraçados começaram a gritar de novo. Minha visão está turva. Preciso checar o perímetro e cuidar dos primeiros socorros - meu kit e meus medicamentos ficaram na valise, mas não há motivo para entrar em pânico ainda: conheço bem esta casa.

Recupero meu machado no chão. Como eu supunha pela marcação, esta é a única janela que não estava barrada por dentro - porém estava protegida por um bizarro guardião sem corpo. Este corredor dá acesso a quatro cômodos e um banheiro,  e termina em uma escada que leva à cozinha na parte dos fundos e à tabacaria. Preciso verificar cada um dos cômodos antes de me certificar que a casa está mesmo vazia, mas antes preciso cuidar dos meus ferimentos. Estou perdendo muito sangue.

                                                                                      ***

Sentado na privada, finalmente dou uma olhada melhor no braço. O corte foi fundo, e o torniquete está ensopado de sangue. Com uma tesoura e uma pinça eu removo o corpo estranho, que parece mais um punhal do que um caco de vidro. O sangue escorre, grosso e abundante. Lavo o ferimento com sabão e água da privada (a única disponível), e sinto a cabeça variando enquanto a água oxigenada fervilha na ferida. Espremo os últimos gramas de um tubo de xilocaína que Mauro gastou de forma animalesca, como ele mesmo gostava de anunciar  quando fazia. Ouço a voz de Virgínia Ortega me chamando no andar inferior. Tenho certeza de que devia dar uns pontos nesse corte, mas não tenho nenhuma idéia de como fazer isso sem  linha e agulha. Coloco uma gaze bem apertada e improviso uma tipóia. Vai ter que servir.

                                                                                      ***

O banheiro é velho e apertado, mas tem uma estapafurdia banheira de louça e um piso em lajotas pretas e brancas todo desfalcado. No móvel onde guardávamos os suprimentos de farmácia sobrou muito pouca coisa - água oxigenada, sabão de enxofre granado, fita isolante, alguns metros de gaze, band-aids e um frasco de vitaminas Centrum. Melhor que nada, mas, a menos que eles tenham ficado MUITO doentes, fugiram com uma porrada de analgésicos e antibióticos.

Prendo a necessaire no cinto, como uma pochete. Preciso checar o resto dos aposentos, pegar o que preciso, e encontrar alguma pista de meus companheiros de sobrevivência.

Volto ao corredor, e verifico que a primeira porta está trancada. Colo os ouvidos na madeira tentando identificar qualquer som, mas não ouço nada além do zumbido que venho escutando desde a explosão do posto de gasolina. A porta está trancada.

Com uma machadada certeira na tranca e um chute frontal, a porta se abre. O machado está  erguido para garantir a iniciativa contra qualquer coisa que saia mordendo lá de dentro.

Este é o quarto onde eles dormiam, e está completamente vazio, exceto pela mobília desgastada e pelos diversos maços e garrafas vazias. Dou uma conferida no guarda roupas, e pego uma das enormes camisas xadrez  que Mauro sempre usava. O fedor dele ainda está na roupa, mas é melhor do que passar frio. Aproveito para meter a tesoura em um velho cobertor puído e improvisar um novo poncho. O inverno está chegando.

Na mesa de cabeceira, um copo de água cheio de larvas de mosquito soa o alerta de que preciso sair daqui o quanto antes. O lugar está cheio de mal-agouro. Posso sentir no ar, assim como o cheiro de podridão. Um arrepio desce pela minha coluna, e a palma das mãos começa a se molhar com o suor dos maus presságios.

Retorno ao corredor.

A outra porta, onde funcionava o escritório da tabacaria, também está trancada. Colo meus ouvidos e ouço um chiado, como uma tv fora do ar. Desço o machado na tranca e abro caminho para eliminar qualquer coisa que surja pelos batentes. Aguardo um segundo e nada acontece. Adentro o cômodo caótico.

O escritório é pouco mais do que um cubículo fedendo a cigarros, cheio de poeira e arquivos mortos que se empilham até o teto na parede dos fundos. Centenas de folhas sujas de papel ofício e bitucas de cigarro estão espalhadas pelo chão, cheias de anotações com a péssima caligrafia de Mauro. O chiado vem de um antigo rádio Mitsubichi ligado com uma gambiarra a uma bateria de carro. Pego aleatoriamente uma folha de papel e leio a garatuja de Mauro:

17/03 - ninguém responde
18/03 - ninguém responde
19/03 - ninguém responde
20/03 - ninguém responde
21/03 - ninguém responde
22/03 - sinal  do exército. sobreviventes devem evacuar para o litoral
23/03 - sinal da cruz vermelha. sobreviventes devem evacuar para as dioceses e igrejas matrizes
24/03 - ninguém responde
25/03 - ninguém responde

A caligrafia está trêmula e borrada, e foi escrita com um lápis cuja ponta furou o papel e se quebrou em diversos lugares. Me aproximo devagar até a escrivaninha sobre a qual está o antigo rádio Mitsubichi, e vejo um destes headsets chineses com o plug meio que conectado na entrada das pilhas. Mais folhas de papel se espalham sobre a mesa.

05/11 - ninguém responde
06/11 - ninguém responde
07/11 - ninguém responde

Estas datas foram carimbadas com tinta vermelha. A caligrafia está tremida, muito pior do que as anteriores. Minha visão volta a escurecer - não tenho mais tempo. Acho que esse filho da puta ficou maluco ou algo pior lhes aconteceu.

Quando vou desligar o rádio, começo  a distinguir uma voz masculina no meio da estática

tchiiiiiiiiiiiiiii...tchiiiiii.... atenção sobreviventes na Zona da Mata e Região tchiiiiiiiiiiii.... Comboios de evacuação partindo para o Porto do Rio de Janeiro nas próximas 72 horas. Se você tem entre 14 e 50 anos, deve se dirigitchiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... tchiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... Os demais devem permanecer onde estão. Uma força de resgate será enviada ao seu endereço para posterior.... tchiiiii...Esta é uma mensagem do Exército Brasileiro. Atenção sobrevitchhhhhhhhhhhiiiiiii....tchiiiiiiii...

PORRA! ISSO FOI HÁ MAIS DE DOIS ANOS!

                                                                                  ***

Desligo o rádio, e planejo levá-lo comigo... só preciso recuperar minha valise e encontrar uma mochila. Deve haver algo assim em algum lugar.

Retorno ao corredor.

Resta vasculhar o meu antigo quarto e a biblioteca. Depois, um pulo na cozinha e na tabacaria do andar de baixo, recolher as provisões que sobraram e encontrar um jeito de sair daqui. Me aproximo da porta do cômodo em que eu dormia, e, quando colo o ouvido na madeira, vejo um dos símbolos de Virgínia Ortega gravado no batente


                                                                        


Sinto meu coração pesar. O cheiro de podridão está mais forte agora, e o perigo é iminente. Eu SEI disso. Eu posso SENTIR.

Com cuidado, me afasto da porta e coloco o lado pé-de-cabra do machado na dobradiça. É preciso mais força quando se faz isso com um braço só... Uso o meu peso e a primeira dobradiça cede. Depois, faço o mesmo com a segunda. A porta pende por uns segundos e depois cai.

BLAM! BLAM!

Ouço dois tiros. O cheiro de pólvora domina o quarto apertado. Eu me aproximo com cuidado e vejo a escopeta de cano serrado atada ao criado mudo, com os dois canos ainda fumegantes. Um fio de arame arrebentado conectava os gatilhos à maçaneta da porta, passando por um rolamento preso no teto.

O mecanismo foi elaborado por uma mente simples e brutal.

Foi por muito pouco.

O colchão onde eu costumava dormir está uma nojeira, e, pelo fedor, vinha sendo usado por Mauro nos dias em que não conseguia sobrepujar a força de Virgínia. Há um fedor de fezes e mijo seco vindo do guarda-roupas onde eu costumava guardar as minhas tralhas. Garrafas, latas de cerveja e maços vazios  espalhados pelo chão completam a cena. 

A escopeta de cano duplo está presa de modo precário no móvel, e eu a recolho satisfeito. Abro a gaveta, e encontro uma embalagem de papel acartonado quase cheia, com 10 cartuchos

"Imbel - munição .12 tipo flechette"

Recarrego a escopeta e prendo-a no cinto. Nunca usei uma destas, mas é uma arma de poucos segredos. É só quebrar o cano e colocar os cartuchos. O gatilho é automático e não há travas de segurança.




Simples e brutal

Talvez aquele porco egoísta tenha deixado mais alguns cartuchos, de maneira que decido vasculhar o móvel. A fedentina é forte, mas quando abro o armário, o choque do fedor e da imagem que vejo me fazem sacar a arma instintivamente e recuar.

Eu vomito no chão, e procuro uma parede  para me apoiar.

No meio de um monte de bosta e trapos mijados, vejo um boneco de pano com duas agulhas de tricô atravessadas na cabeça. O boneco está amarrado com um cachecol que me pertencia, e está sentado em um prato de merda ao lado de um maço de Lucky Strike fechado e uma garrafa de Almadém tinto. Eu me preparo pra dar um tiro de escopeta naquela profanação, mas contenho meu impulso. Não estou em posição de desperdiçar esse cabernet. Me aproximo do boneco medonho com cuidado e recolho o meu butim.

Há um papel pardo no fundo do armário, em que se pode ler numa caligrafia riscada com bosta e dedos.

                  
                  VOCÊ VAI MORRER SEU CANALHA
                  VOCÊ VAI PAGAR PELO QUE FEZ COM A GENTE


Tenho ânsias de vômito, mas não resta nada no estômago  para vomitar. Saio cambaleando do quarto imundo, tropeçando em minhas próprias pernas, a cabeça rodando sem conseguir respirar. Ignoro a porta da biblioteca e viro à esquerda em direção ao hall da escada, que também dá acesso ao balcão. Dobro o corredor apressado, e logo me arrependo da minha imprudência




Virginia Ortega está pendurada na ponta de uma corda.
As varejeiras esmeralda compõem a corte da rainha morta. 

Sinto  vontade de chorar.
Por um instante fico perdido, contemplando a face enegrecida de Virgínia devastada pelos animais invertebrados. A língua negra e inchada se projetando até o queixo de uma maneira obscena. Os olhos ressecados ainda estão abertos, e encontram os meus pela última vez.

Sinto vontade de chorar, mas não derramo uma única lágrima por Virgínia Ortega.
Estou desidratado.

                                                                                      ***

Desço a escada correndo, deixando para  trás o cadáver envolto na nuvem de varejeiras verdes que refletem a luz da janela. Vou até a cozinha atrás de um gole de água, mas encontro apenas uma lata de Kaiser esquecida atrás de um pacote de maizena, ambas vencidas.

A tabacaria se converteu numa extensão do quarto de Mauro, e tem o cheiro entranhado de milhares de cigarros e cerveja choca. O chão é uma imundície de bitucas, maços e garrafas espalhadas.

O filho da puta fumou tudo. TUDO!

Dou um chute irritado no balcão, e a caixa registradora se abre com um trinado de escárnio.
Quebro a vitrine com o machado, e começo a separar as coisas que ainda podem me servir.

- uma dúzia de isqueiros Zippo e latas de fluido original
- dois cachimbos: um rhodesian reto e um churchwarden vermelho
- duas caixas de Borkum Riff Black Cavendish
- uma "faca de caça":  sei que não posso confiar muito nela, mas a bainha magnética e a lâmina negra me convenceram.
- cinco tubos de super bonder "genérico".
- linha de pesca, e anzóis - que eu guardo na necessaire.
- um "dichavador-bússola" e uma seda smoking - just in case
- uma caixa de fogos de artifício "Cienfuegos Maggia", e uma de "Girândola 468 tiros" - seja lá o que for.

Não sei por que razão idiota as tabacarias brasileiras vendem equipamento de pesca. De uma maneira ou de outra, essa idiossincrasia comercial me serve bem - preciso recuperar a minha valise. Subo com a tralha toda de uma vez para evitar passar pelo cadáver de Virgínia novamente.

                                                                                      ***

Vou até o parapeito da janela por onde entrei, e abro a lata de Kaiser.  Por um instante, contemplo os mortos com seus braços débeis tentando me alcançar, enquanto gorgolejam sua nojeira infecta.

Está na hora de acabar com a palhaçada.

BLAM! BLAM!
     BLAM! BLAM!
          BLAM! BLAM!
              BLAM! BLAM! 



Sopro o cano da escopeta e carrego os dois últimos cartuchos.

Usando um anzol que poderia fisgar um pacu, preso ao fio de nailon mais grosso que encontrei, eu resgato a minha valise com cuidado do meio da carnificina. Os desmortos não passam de uma massa disforme de podridão, ossos e coágulos esparramados no chão. Os outros começam a gritar no portão.

Acendo um luckie e termino minha lata de Kaiser, enquanto as labaredas consomem o primeiro edifício do quarteirão.