quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Má Companhia, III





Acordei com o sol  mutilando meus sonhos com sua motosserra de luz. Por um momento, era como se eu estivesse de novo sentado na sala da minha casa, comendo uma pizza gelada e curando a ressaca diante da TV. No sonho, eu assistia a algum desenho animado ancestral sobre gatos e ratos, enquanto crianças estúpidas brincavam com facas em volta do meu sofá. Mas o sonho se foi, e com a luz do novo dia veio a lembrança da noite escura.

Eu me lembrava.

Ratos, ratos, ratos - a voz dentro da minha cabeça não cessava de repetir - eram apenas ratos, ratos roendo e roubando da adega do Rei.


***

Já estavam todos de pé, discutindo entre si e batendo as cabeças - o mal súbito que se abateu sobre a "Resistência" deixou o grupo acéfalo, sem a menor sombra de comando. Matsumoto insistia em tentar fazer com que Pedro metralha falasse alguma coisa, mas o bravo soldado estava chorando como um bebê,  mijando e enchendo as próprias calças de merda, enquanto Míriam o fazia beber água com uma insistência deprimente - o homem vomitava a cada trinta segundos, e se borrava em sangue num fluxo contínuo.

Pedro, o lacaio, estava ainda pior, e o grupo já o tinha abandonado ao próprio azar. Estava encostado em uma árvore, sentado sobre uma poça de mijo, estrebuchando em dolorosa agonia. Os olhos perdidos e arregalados, estúpidos como os de um bovino, pareciam não acreditar - mas não é preciso acreditar na morte para ser um homem morto: sua língua pendia numa ânsia interminável, a respiração cada vez mais curta. Não lhe restava mais que um par de minutos, e ele morreu sozinho.

Viveram como ratos e morreram como cães - não era um saldo ruim.


[Um homem glutão que bebe mais do que deve
 atrai dor sobre si:
 Da mesa do sábio ele se serve sem ser convidado
E depois muito reclama, por sua barriga inchada]


Miranda chorava de dor e humilhação. Urinava nas próprias roupas e tremia descontroladamente, enquanto repetia para si mesma que não queria morrer. O Dr. Sérgio a fez engolir óleo de soja, o que a fazia vomitar, e depois vomitar mais ainda. Obrigou-a a comer vários pedaços de carvão da fogueira da noite anterior - apesar dos protestos da cadela, o dentista parecia determinado a salvar a sua vida, e sabia o que estava fazendo. Estavam todos atordoados pela energia com que ele lidava com tudo - era o único do grupo que conseguia pensar claramente (além de mim mesmo).

__ João! Pegua aquelas flores na beira do lago! As amarelas!
__ aquelas? Mas... Sérgio... por Cristo, aquilo é venenoso! Você vai...
__ FAZ O QUE EU TO MANDANDO, PORRA! AGORA! VOCÊ POR UM ACASO TEM UMA AMPOLA DE ATROPINA ENFIADA NO RABO?!

Enquanto o Pastor hesitava, Sérgio Vidal o empurrou para tirá-lo do caminho, e se lançou na lama do lago agarrando os galhos do arbusto com flores grandes e amarelas. Eram flores de trombeta, e até onde eu sabia, eram conhecidas por serem venenosas...

Tanto melhor se assim o fosse. Mas ele realmente sabia o que estava fazendo.


***

__ O que você fez com eles, seu DESGRAÇADO?!
__ Tentei impedir que eles bebessem a garrafa. Não tive nenhuma participação nisso, e você SABE.
__ MENTIROSO! - a calma desapareceu da face de cyborg, e Matsumoto se lançou sobre mim como um animal raivoso. Sua cara estava vermelha e seus olhos estavam injetados de ódio.

Não tive tempo de me esquivar do murro que me acertou na cara - e, para ser franco, eu nem ao menos tentei. Quando ele me derrubou, comecei a gargalhar. Meu riso não era apenas por achar graça da situação - meus torturadores morrendo no meio da própria merda. Era também a única arma que me restava. Meu riso o deixava louco, e quanto mais louco ele ficasse, com mais sede entraria na armadilha. O fato é que eu não podia deixar de rir.

[Um golpe de sorte. Você só precisa de um golpe de sorte. Os deuses estão contigo]

__ DESGRAÇADO! DESGRAÇADO! - o homem esmurrava minha cara, e rolávamos pelo chão. Mas aquilo me fazia rir mais ainda, e ainda mais alto: meu riso reduzia o honrado comandante ao mais feroz dos animais. Todos olhavam abismados enquanto o homem me surrava, e eu nada fazia para me defender.

__ EU VOU MATAR VOCÊ, DESGRAÇADO!!!

Foi necessário que o Sgto. Torres e Rodrigo, o portador da temível faca kukri, segurassem o coronel pelos braços. Os outros estavam boquiabertos, apavorados demais para fazer qualquer coisa. O Pastor observava em silencio. Adivinhei que ninguém ali jamais tinha visto o seu líder perder o controle - e esse crédito era devido a mim. Eu gargalhava como um louco, enquanto cuspia o sangue que escorria por dentro do meu nariz e se acumulava na minha boca. Ri até perder o folego, enquanto os homens arrastavam o seu líder para longe. Minha cara era uma ruína sangrenta, mas meu espírito estava cheio dos deuses, e nada poderia me deter.

[ um golpe de sorte]

__ Vamos lá, coronel! Me mate! Me mate antes que eu conte a verdade a eles!

O Pastor, aque àquela altura já havia recobrado o raciocíno pelo cheiro do sangue, aguçou os olhos e os ouvidos, buscando uma posição privilegiada em meio ao caos... os outros simplesmente me olhavam, estupidificados pela cena que testemunhavam, horrorizados pelo espetáculo que eu promovia. Apenas Sérgio continuava trabalhando, imperturbável, fervendo as flores em uma panela.

__ Vamos, coronel... Mostre pra eles quem você realmente é! Você queria mesmo se livrar dos "insubordinados", e eu sou a desculpa perfeita. Não é isso? Você vai ter coragem de NEGAR??

O Coronel parou de se mover, mas os homens não o largaram. Seus olhos mudaram, o rosto se congelou, tentando alcançar novamente a frieza que tinham antes... Mas não podia.

Já era tarde demais para ele também.



__Por quê você não diz logo que foi o senhor mesmo quem envenenou esses putos!? Vamos!! Por quê não admite o que você tentou me obrigar a fazer ontem a noite?

Todos os olhares estavam sobre mim agora. Quando Torres soltou o coronel, o homem partiu como uma bala na minha direção, disposto a me liquidar. Eu abri os braços, e apostei todas as minhas fichas. Tinha que ir com aquilo até o final. um golpe de sorte.


__ Vai me matar antes que eu conte a verdade!? Por quê você mesmo não conta para eles o que me disse ontem à noite, atrás do caminhão? Por quê não conta o preço que me exigiu para me deixar ficar aqui?!

Senti as mãos do coronel se fechando sobre a minha traquéia, e o ar parou de passar. Meus olhos encontraram os dele uma última vez, mas o que eu via era desespero. O suor que pingava de sua fronte tinha cheiro de medo. Um cheiro forte o bastante para ser percebido pelas naridas dilatadas do crocodilo.

__ Mauro diz a verdade. Eu ouvi tudo!

João Paulo cantou com sua voz de pássaro, alto o bastante para que todos no acampamento ouvissem. Quanto a mim, senti os dedos do coronel ficarem trêmulos, e vi também sua expressão quando a alma se quebrou.

Pelos deuses, aquilo era bom demais.

O Pastor continuou:

__ Eu ouvi ele pedindo pro Mauro matar os três com veneno, e ouvi ele falar que não. Eu ouvi tudo, e implorei ao Senhor que mudasse os pensamentos do Coronel Carlos... Ah! Senhor! Deveria ter impedido isso, mas tive medo! Como fui fraco!

__ E eu ouvi quando o estrangeiro tentou impedir eles de pegar a garrafa. - Era o Sgto. Torres quem falava, enquanto caminhava em direção ao coronel. Ele nem ofereceu resistência quando o brutamontes o ergueu pelos braços.

__ Torres, eu... isso é um motim!?
__ Vamos coronel... Rodrigo, me ajude com isso.
__ Torres! me larga! isso é uma ORDEM!

Mas as ordens chegavam como uma voz baixa e distante. A canção hipnótica do Pastor já enchia os ouvidos do sargento.

Rodrigo se juntou a eles, esperando que as ordens do novo comandante. Mas ela não veio.

__ Ainda não, Rodrigo. - era a voz do Pastor que saia da boca do sargento.
__ Mas vocês... isso não...
__ Coronel, acho que o senhor mesmo vai querer fazer isso. Como vai ser?

Compreendendo que chegara ao fim de sua estrada, o Coronel recuperou sua compostura para encontrar a morte. Era de novo o homem que já tinha sido, e a iminência do fim já não lhe causava nenhum medo.

__ Eu mesmo faço. Tragam a minha espada.
__ Vai ser aqui mesmo?
__ Não, não. Se puder, quero fazer isso sozinho.

E o coronel se afastou para morrer, levando consigo apenas sua honra e sua espada.

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