sábado, 29 de setembro de 2012

Má Companhia, IV

11 de junho de 2015 - 3º ano da Era do Apocalipse (Continuação)

As coisas vão mal.
Neste exato momento, o Senhor me envia uma provação que não sou capaz de suportar em silêncio.Choro, e minhas lágrimas ardem em minha face como se fossem a vergonha vertida em ácido.

O coronel veio de novo até nós, com sua demanda por carne e espírito. Serei eu, oh Senhor, digno de tamanha provação? Serei eu humilde o bastante para silenciar enquanto o homem envolto em pecados se satisfaz com a carne de minha esposa?

Esse é o preço que me é cobrado. Os gemidos de Cecília me enchem de vergonha e humilhação...
Ele está com ela, a beira do lado... eu os ouço em pecado, porque sei o que é pecaminoso e o que não é. E tem sido assim por quase um ano, desde que nos unimos à resistencia. O Coronel é nosso líder, e ele tem direiro a se satisfazer como homem... Ou não será o nosso líder mais do que um homem...
Ele não é mais que um homem, tampouco o sou eu.


Aos olhos de Cristo, isto é ABOMINAÇÃO.

A besta assumiu o corpo do Coronel novamente... para satisfazer seu desejo profano, nada além de dor e humilhação é imposto a minha família..

Preciso AGIR. o Senhor meu Deus está comigo.
Nada posso fazer senão orar em silêncio, assim como o estrangeiro o faz, na beira do lago. Estranhos aliados me envia na hora incerta, oh Senhor!

Que assim seja... mas minha fé não pode suportar muito tempo...
a manhã surgirá, trazendo as boas novas e a  revelação.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Má Companhia, III





Acordei com o sol  mutilando meus sonhos com sua motosserra de luz. Por um momento, era como se eu estivesse de novo sentado na sala da minha casa, comendo uma pizza gelada e curando a ressaca diante da TV. No sonho, eu assistia a algum desenho animado ancestral sobre gatos e ratos, enquanto crianças estúpidas brincavam com facas em volta do meu sofá. Mas o sonho se foi, e com a luz do novo dia veio a lembrança da noite escura.

Eu me lembrava.

Ratos, ratos, ratos - a voz dentro da minha cabeça não cessava de repetir - eram apenas ratos, ratos roendo e roubando da adega do Rei.


***

Já estavam todos de pé, discutindo entre si e batendo as cabeças - o mal súbito que se abateu sobre a "Resistência" deixou o grupo acéfalo, sem a menor sombra de comando. Matsumoto insistia em tentar fazer com que Pedro metralha falasse alguma coisa, mas o bravo soldado estava chorando como um bebê,  mijando e enchendo as próprias calças de merda, enquanto Míriam o fazia beber água com uma insistência deprimente - o homem vomitava a cada trinta segundos, e se borrava em sangue num fluxo contínuo.

Pedro, o lacaio, estava ainda pior, e o grupo já o tinha abandonado ao próprio azar. Estava encostado em uma árvore, sentado sobre uma poça de mijo, estrebuchando em dolorosa agonia. Os olhos perdidos e arregalados, estúpidos como os de um bovino, pareciam não acreditar - mas não é preciso acreditar na morte para ser um homem morto: sua língua pendia numa ânsia interminável, a respiração cada vez mais curta. Não lhe restava mais que um par de minutos, e ele morreu sozinho.

Viveram como ratos e morreram como cães - não era um saldo ruim.


[Um homem glutão que bebe mais do que deve
 atrai dor sobre si:
 Da mesa do sábio ele se serve sem ser convidado
E depois muito reclama, por sua barriga inchada]


Miranda chorava de dor e humilhação. Urinava nas próprias roupas e tremia descontroladamente, enquanto repetia para si mesma que não queria morrer. O Dr. Sérgio a fez engolir óleo de soja, o que a fazia vomitar, e depois vomitar mais ainda. Obrigou-a a comer vários pedaços de carvão da fogueira da noite anterior - apesar dos protestos da cadela, o dentista parecia determinado a salvar a sua vida, e sabia o que estava fazendo. Estavam todos atordoados pela energia com que ele lidava com tudo - era o único do grupo que conseguia pensar claramente (além de mim mesmo).

__ João! Pegua aquelas flores na beira do lago! As amarelas!
__ aquelas? Mas... Sérgio... por Cristo, aquilo é venenoso! Você vai...
__ FAZ O QUE EU TO MANDANDO, PORRA! AGORA! VOCÊ POR UM ACASO TEM UMA AMPOLA DE ATROPINA ENFIADA NO RABO?!

Enquanto o Pastor hesitava, Sérgio Vidal o empurrou para tirá-lo do caminho, e se lançou na lama do lago agarrando os galhos do arbusto com flores grandes e amarelas. Eram flores de trombeta, e até onde eu sabia, eram conhecidas por serem venenosas...

Tanto melhor se assim o fosse. Mas ele realmente sabia o que estava fazendo.


***

__ O que você fez com eles, seu DESGRAÇADO?!
__ Tentei impedir que eles bebessem a garrafa. Não tive nenhuma participação nisso, e você SABE.
__ MENTIROSO! - a calma desapareceu da face de cyborg, e Matsumoto se lançou sobre mim como um animal raivoso. Sua cara estava vermelha e seus olhos estavam injetados de ódio.

Não tive tempo de me esquivar do murro que me acertou na cara - e, para ser franco, eu nem ao menos tentei. Quando ele me derrubou, comecei a gargalhar. Meu riso não era apenas por achar graça da situação - meus torturadores morrendo no meio da própria merda. Era também a única arma que me restava. Meu riso o deixava louco, e quanto mais louco ele ficasse, com mais sede entraria na armadilha. O fato é que eu não podia deixar de rir.

[Um golpe de sorte. Você só precisa de um golpe de sorte. Os deuses estão contigo]

__ DESGRAÇADO! DESGRAÇADO! - o homem esmurrava minha cara, e rolávamos pelo chão. Mas aquilo me fazia rir mais ainda, e ainda mais alto: meu riso reduzia o honrado comandante ao mais feroz dos animais. Todos olhavam abismados enquanto o homem me surrava, e eu nada fazia para me defender.

__ EU VOU MATAR VOCÊ, DESGRAÇADO!!!

Foi necessário que o Sgto. Torres e Rodrigo, o portador da temível faca kukri, segurassem o coronel pelos braços. Os outros estavam boquiabertos, apavorados demais para fazer qualquer coisa. O Pastor observava em silencio. Adivinhei que ninguém ali jamais tinha visto o seu líder perder o controle - e esse crédito era devido a mim. Eu gargalhava como um louco, enquanto cuspia o sangue que escorria por dentro do meu nariz e se acumulava na minha boca. Ri até perder o folego, enquanto os homens arrastavam o seu líder para longe. Minha cara era uma ruína sangrenta, mas meu espírito estava cheio dos deuses, e nada poderia me deter.

[ um golpe de sorte]

__ Vamos lá, coronel! Me mate! Me mate antes que eu conte a verdade a eles!

O Pastor, aque àquela altura já havia recobrado o raciocíno pelo cheiro do sangue, aguçou os olhos e os ouvidos, buscando uma posição privilegiada em meio ao caos... os outros simplesmente me olhavam, estupidificados pela cena que testemunhavam, horrorizados pelo espetáculo que eu promovia. Apenas Sérgio continuava trabalhando, imperturbável, fervendo as flores em uma panela.

__ Vamos, coronel... Mostre pra eles quem você realmente é! Você queria mesmo se livrar dos "insubordinados", e eu sou a desculpa perfeita. Não é isso? Você vai ter coragem de NEGAR??

O Coronel parou de se mover, mas os homens não o largaram. Seus olhos mudaram, o rosto se congelou, tentando alcançar novamente a frieza que tinham antes... Mas não podia.

Já era tarde demais para ele também.



__Por quê você não diz logo que foi o senhor mesmo quem envenenou esses putos!? Vamos!! Por quê não admite o que você tentou me obrigar a fazer ontem a noite?

Todos os olhares estavam sobre mim agora. Quando Torres soltou o coronel, o homem partiu como uma bala na minha direção, disposto a me liquidar. Eu abri os braços, e apostei todas as minhas fichas. Tinha que ir com aquilo até o final. um golpe de sorte.


__ Vai me matar antes que eu conte a verdade!? Por quê você mesmo não conta para eles o que me disse ontem à noite, atrás do caminhão? Por quê não conta o preço que me exigiu para me deixar ficar aqui?!

Senti as mãos do coronel se fechando sobre a minha traquéia, e o ar parou de passar. Meus olhos encontraram os dele uma última vez, mas o que eu via era desespero. O suor que pingava de sua fronte tinha cheiro de medo. Um cheiro forte o bastante para ser percebido pelas naridas dilatadas do crocodilo.

__ Mauro diz a verdade. Eu ouvi tudo!

João Paulo cantou com sua voz de pássaro, alto o bastante para que todos no acampamento ouvissem. Quanto a mim, senti os dedos do coronel ficarem trêmulos, e vi também sua expressão quando a alma se quebrou.

Pelos deuses, aquilo era bom demais.

O Pastor continuou:

__ Eu ouvi ele pedindo pro Mauro matar os três com veneno, e ouvi ele falar que não. Eu ouvi tudo, e implorei ao Senhor que mudasse os pensamentos do Coronel Carlos... Ah! Senhor! Deveria ter impedido isso, mas tive medo! Como fui fraco!

__ E eu ouvi quando o estrangeiro tentou impedir eles de pegar a garrafa. - Era o Sgto. Torres quem falava, enquanto caminhava em direção ao coronel. Ele nem ofereceu resistência quando o brutamontes o ergueu pelos braços.

__ Torres, eu... isso é um motim!?
__ Vamos coronel... Rodrigo, me ajude com isso.
__ Torres! me larga! isso é uma ORDEM!

Mas as ordens chegavam como uma voz baixa e distante. A canção hipnótica do Pastor já enchia os ouvidos do sargento.

Rodrigo se juntou a eles, esperando que as ordens do novo comandante. Mas ela não veio.

__ Ainda não, Rodrigo. - era a voz do Pastor que saia da boca do sargento.
__ Mas vocês... isso não...
__ Coronel, acho que o senhor mesmo vai querer fazer isso. Como vai ser?

Compreendendo que chegara ao fim de sua estrada, o Coronel recuperou sua compostura para encontrar a morte. Era de novo o homem que já tinha sido, e a iminência do fim já não lhe causava nenhum medo.

__ Eu mesmo faço. Tragam a minha espada.
__ Vai ser aqui mesmo?
__ Não, não. Se puder, quero fazer isso sozinho.

E o coronel se afastou para morrer, levando consigo apenas sua honra e sua espada.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Má Companhia, II



Quando Matsumoto terminou o interrogatório, eu estava cansado demais para pensar num plano de fuga ou fazer qualquer coisa além de me arrastar para um canto escuro e apagar. Estava ferido, exausto, e faminto, e não tinha certeza sobre o paradeiro da valise com minhas últimas provisões.

Se as coisas podiam piorar?
Sempre podem.

Haviam estendido uma coberta na carroceria, onde o Pastor João Paulo e suas esposas - Cecília e Míriam - faziam uma oração. No entorno da Scania havia outras quatro barracas-iglu do exército, mas, exceto pela "sagrada família" e pelo coronel, todos se aqueciam em torno de um tambor metálico fumegante, onde algo cozinhava dentro de uma panela.

Tentei ser positivo, e fiz o possível para demonstrar toda a confiança e honestidade próprias a um recruta não-voluntário da "Resistência" - o que quer que essa porra significasse. Estendi a mão boa em uma saudação, mas poucos se dignaram a me dirigir um olhar. Torres, o sargento corpulento que horas atrás havia enfrentado o mar desmorto para salvar minha vida, simplesmente se levantou e me deu as costas enquanto eu me aproximava do fogo. Wiliam esboçou um sorriso opaco, que morreu assim que Rodrigo o mirou com seus olhos de psicopata, sem parar de amolar a enorme faca kukri que tinha nas mãos.




Pedro Metralha fumava o meu maço de luckies vorazmente, prendendo o riso de escárnio e o cigarro nos dentes encavalados. Mas que filho da puta... eu simplesmente não podia permitir que ele fumasse aqueles luckies.

***

Eles estavam comendo as minhas últimas provisões - ervilhas, salsichas e pêssegos para a sobremesa. Os mais escrotos dentre eles comentavam como a comida estava boa, mas me segurei. Miranda cuspiu uma das esferas de flechette na mão e resmungou:

__Mas que merda, hein, Neanderthal! você é tão fodido que até as suas ervilhas levaram chumbo!

O casal ria da minha desgraça, seguido por seu cachorrinho ressentido. Mas naquele momento eu soube que eles estavam condenados. Minha mente foi tocada pela luz da compreensão - e desta vez era a luz vermelha da morte.

[O convidado prudente tem sua maneira de tratar
com aqueles que o ridicularizam a mesa:
Ele sorri através da comida e não parece ouvir 
as bobagens faladas por seus inimigos]

__ Onde está minha bolsa? - fiz um esforço tremendo para não deixar o ódio explodir, o que seria simples suicídio. A voz passou rascante pela minha garganta, mas saiu baixa e hesitante, como eu planejava.

  [Você precisa ficar frio

__ Está aqui comigo. Procurei uns medicamentos nas suas coisas, mas não encontrei nada que preste. Achei que não se importaria de compartilhar a sua comida, já que salvamos a sua vida e tal, mas, de qualquer maneira, se essa ferida infeccionar, e sem antibióticos, você não vai durar muito. Deixa eu ver esse braço.

Era Sérgio Vidal quem falava... o dentista se mantinha incrivelmente balofo, mesmo com a escassez de comida dos dias atuais. Sentei ao lado de Pedro, o Lacaio, enquanto Sérgio lavava o meu ferimento e tentava abri-lo com uma pinça e uma tesoura. Estava inchado, dolorido, mas aguentei firme enquanto ele extraia um caco de vidro inacreditável da ferida.

__ É quase certo que isso vai infeccionar. E se infeccionar, você já era. Ah! nós estamos sem sabão.
__ Que seja... - eu gemi. __ Só me diga que eles não roubaram o meu vinho.  

[Seja frio. Seja muito frio]

__ Bom, eu pensei em ficar com a garrafa em pagamento pela consulta... mas se você faz tanta questão, que se foda. Não quero piorar as coisas para você. Seria até antiético.
__ Pode me devolver minhas paradas agora? Se eu viver o suficiente, pagarei pela sua consulta.
__ Ahãm. Pode pegar. Mas você vai notar que suas armas foram confiscadas até o coronel decidir o que fazer com você.
 
 ***

Eu dormi no chão duro, enrolado na manta suja e usando a valise quase vazia como travesseiro. A garrafa de Cabernet estava precariamente escondida sob a valise.

[Seja frio]
Eles vieram à noite, se esgueirando vorazes como ratazanas saídas das sombras. Acordei, mas permaneci com os olhos fechados, enquanto eles me cercavam. Me preparei para o impacto, e como o previsto, ele estourou de novo nas minhas costelas.

__ Cadê a birita, Neanderthal?
__ Vocês não se satisfazem em roubar meus cigarros? Vão roubar o meu vinho?
__ Cala a boca, porra. Cadê a birita? - era a voz de Pedro Lacaio. __ Eu ouvi você falando que tinha uma garrafa de vinho, seu otário.
__ Ninguém aqui vai dar a mínima se você morrer, Neander. Aliás, amanhã eu vou votar pela sua morte. - O Metralha relinchava ameaças, e eu sentia o seu bafo de ódio.
__ Se eu der a garrafa, vocês vão parar? Vão parar de me torturar e de me roubar?
__ Não, mas você pode sonhar com isso até amanhã. Pelas minhas contas, você já é um homem morto.
__ Não vou... - as palavras morreram em meus lábios quando a mão pesada me acertou na cara. Rolei para o lado, me agarrando a valise e revelando a garrafa.

[Frio]

__Estou avisando para devolverem a minha garrafa - falei alto.
__ Cale a boca, estrangeiro. Não está achando que eu vou te salvar dos mortos de novo, está? - era Torres, que estava de vigia naquela noite.
 
Os ratos se afastaram na escuridão, ao encontro do seu destino.
Voltei a dormir.
Fazia muito frio.

 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Má Companhia



O fogo queimou por um longo tempo, e as chamas engoliram tudo o que estava em seu caminho.
Prédios, placas, árvores, casas, carros, corpos - o fogo devastou tudo, até que a cidade fosse reduzida a ruínas de cimento negro e aço retorcido.

Tudo queima.

Por nove dias e nove noites a cidade ardeu em uma pira, mas, depois do incêndio, a cidade estava pura. Os caminhos que tomarão as almas que também arderam é desconhecido para mim, mas ao menos os corpos foram honrados. Não precisarão mais vagar pelas ruínas, sedentos, famintos, sem ter para onde ir. O bem que fiz ao incendiar a cidade foi maior do que o mal que causei, e ninguém pode desejar nada melhor do que um funeral digno nos tempos do Ragnarök.

Por nove dias e nove noites eu também queimei, e, assim como a cidade, também fui purgado pelo fogo. Agora, com um prato de sopa quente e diante da fogueira, eu me recordo do sofrimento sem dores ou remorsos.

***

__ Você não está vendo?! Ele foi MORDIDO! Porra, Sérgio, ele tá infectado!
__ Isso não é uma mordida, porra! -  eu sou um DENTISTA, e devo saber alguma coisa sobre mordidas!!! este é um ferimento circular num braço imundo, e só! você já viu um zumbi com boca de cu e dente de vidro? então, NÃO é uma mordida! mas você está certa numa coisa: essa merda vai infeccionar e esse cara tá fodido, de um jeito ou de outro.

Miranda saiu pisando duro e foi conspirar com os dois Pedros - o mecânico e o "Metralha". Fui me acocorar num canto da carroceria, tentando não encarar nenhum deles e evitando qualquer tipo de contato - as barras na carroceria me remetiam à cadeia, e, por acaso, eu sei como me portar quando entro em uma cela. Fechei a face e a mente, mas meus pensamentos foram capturados por alguém que tinha um faro impressionante para as fraquezas humanas. Os outros tripulantes me ignoravam completamente.

__Esta é a água da redenção. Beba, meu filho.

Tomei a garrafa pet de suas mãos num impulso, imaginando que o pastor pudesse me obrigar a beijar uma bíblia antes de saciar minha sede. Depois de um dia de horror e jaggermeister mal dormido, este seria um argumento perfeito para uma conversão pública e instantânea. Mas não queria fazer isso ainda.

__ Tua sede não é de água ou de alimento, é sede de Espírito. Você deseja viver, meu irmão. É esta a sede que te consome. Beba, filho. Beba à vontade.

E eu bebi, e senti a água descendo pela garganta como se jorrasse do rio do Éden. Eu bebia como um desesperado, a água escorrendo pelo queixo barbado e imundo. Ouvia o som da catequese se aproximar e se afastar, mas não prestava atenção às palavras suaves e ululantes nos meus ouvidos - a voz do sacerdote era penetrante e hipnótica. Contudo, havia algo de errado nele... os olhos tinham uma marca de dureza que não me deixava enganar. Não piscavam, e seu sorriso surgia do nada, de uma forma que me pareceu inverossímil desde o início - um animal que mantém os dentes brilhando mesmo no fim do mundo só poder ser um predador. Ele falava sem parar com sua voz de pássaro, mas os dentes brancos e os olhos imóveis denunciava a natureza do crocodilo.


 [Aqueles que tem visto e tem sofrido muito,
e sabem as maneiras do mundo que tem percorrido,
podem dizer que espírito governa
aos homens que encontram]


__ A  única água que pode saciar a sua sede é a água do Espírito. Beba à vontade, filho, este é um manancial inesgotável de vida. Beba mais um pouco, hoje a tua sede será saciada.

E eu bebia mais, até não poder aguentar. Era a primeira água que eu bebia em mais de 24 horas.

__ Posso fumar um cigarro? - Tentei parecer natural, mas a verdade é que o homenzinho estava me colocando medo, de verdade. Preferia que deixasse a água e fosse embora com a fumaça, mas ele parecia determinado a me falar do seu deus e de outras bobagens, antes de me conceder a dádiva de fechar os olhos por uns minutos e recuperar o fôlego.

Mas não houve descanso.  Nem sequer pude terminar meu cigarro.
Miranda e seu pittbul não permitiram.

__ Aí, JP. O Coronel quer ver o Neandhertal que nós capturamos. Levanta, Neandher!

Num primeiro momento ignorei a voz imperativa de Miranda, mas não por falta de ímpeto dela ou por algum orgulho que eu pudesse preservar na minha condição - algo na forma como todos me olhavam me diziam que eu estava preso, e minha estratégia começava a ficar clara a medida que me dava conta desse fato.

Assim como no xadrez, entendi que ceder a posição significaria perder espaço - e eu não tinha conseguido mais do que sete murros e um litro d'água. Encarei a garota com o cigarro entre nós, e vi quando ela começou a sentir o meu peso. Os olhos dela iam arriar, mas o Metralha me deu um chute nas costelas, e este era um argumento completamente diferente. Quando me levantei, Pedro Metralha tomou o maço das minhas mãos, ao mesmo tempo em que Miranda me puxava pelo braço ferido. Gritei de dor, e deixei o cigarro cair - eles me atacavam como uma matilha, enquanto o pastor observava, finalmente em silêncio. Pedro mecânico fumou o toco que restava do meu cigarro, o que revelava seu lugar inferior na hierarquia daquele bando: se tivesse certeza de que os companheiros compartilhariam a pilhagem, teria esperado um cigarro inteiro. Mas o homem se limitou a olhar faminto para o maço de cigarros e para a mulher.

Aquele era um elo fraco. 

***

Fui empurrado para a cabine da scania através de um teto solar com barras de metal. O piloto da máquina de massacrar desmortos é o homem franzino a quem chamam Wiliam. Carlos Matsumoto estava no comando, e sentava-se a sua direita. A minha primeira impressão sobre ele foi de que o coronel não era um ser humano, mas sim um cyborg: suas feições eram chapas de aço forjadas a frio.

__ Você está aqui desde o início? Estava aqui, nesta cidade?
__ Sim. Me chamo Mauro. Muito obrigado pelo resgate, mas...
__ Vamos deixar as apresentações e os agradecimentos para depois. Responda. Preciso das coordenadas para sair daqui.- eu tentava não encará-lo, mas era impossível. __ Diga para onde você estava indo. Mostre onde fica o seu refúgio.
__ Eu estava fugindo sem rumo, sem nenhuma direção.
__ Responda o que quero saber agora.

Não menti quando disse que não sabia para onde estava indo. Nas últimas doze horas, não pude enxergar nada que estivesse mais de um passo adiante - mas essa resposta não servia para o Coronel, cuja voz agora mostrava o gume afiado. Eu não podia entregar o mapa com os meus refúgios e anotações. As ruas principais estavam muito bloqueadas, mas eu conhecia um caminho que me daria algum tempo.

[sábio não é quem nunca está calado
e balbucia palavras sem sentido:
um linguarudo eloqüente que segue falastrão,
canta a seu próprio dano]


__O que sabe sobre este lugar aqui, à margem do rio e da rodovia? - o coronel apontava um mapa, mostrando o local afastado na parte alta da cidade, o mesmo que eu pensava em informar. Não tinha nenhuma intenção de revelar o meu próprio mapa ou o meu verdadeiro refúgio, mas o cretino leu os meus pensamentos, ou, mais provavelmente, seguiu meus olhos quando se fixaram na área da represa enquanto ponderava se deveria ou não revelar minha principal fonte de água. Pelos deuses! Eu não estava lidando com simples psicopatas... Se eu não o satisfizesse com minha próxima resposta, ele encontraria um meio de extraí-la.

__ É a represa. Fica do outro lado da cidade, e podemos contornar por fora do perímetro urbano.
__ Isso é óbvio. Fale o que quero saber.
__ O caminho está limpo, mas os mercados também. Tem poucas casas lá. E muitos mortos, como em toda parte.
__ Mostre o caminho para o Wiliam. O caminho que você ia tomar.
__ Se é o que você quer, tudo bem, mas...
__ Mostre o caminho.- o coronel falava baixo, mas agora soava como uma espada saindo da bainha.

As coisas estavam começando a funcionar. Eles se revelavam, enquanto meus pensamentos permaneciam ocultos nas sombras.


***

Wiliam seguiu minhas orientações, mas na metade do trajeto eu já não era necessário. Ele era mais do que um piloto de fuga - sabia ler o mapa e também onde bater nos carros. Também sabia como massacrar o maior número de zumbis que fosse possível. Quando tinha pista limpa, Wiliam fazia soar a buzina de cargueiro, e os desmortos eram atraídos para uma segunda morte sob toneladas e toneladas de aço. O rapaz era franzino, mas tinha sua forma de ser pesado.

__ Parece que não, mas eles são todos iguais. Repetem sempre o mesmo movimento, e todos copiam o que o primeiro faz. A gente tem que matar o máximo possível, é nosso dever.
__ Mas eles seguirão a buzina - o rapaz deu de ombros. Ele escolhia o perigo.
__ Eles são muito burros. A intenção é essa. Esse é o trabalho da Resistência.
__ Wiliam, a partir deste trecho não devemos atrair mais atenção - o coronel cortou nossa conversa. Vire à esquerda, e depois suba à direita. Estamos chegando ao nosso objetivo.
__ Você é que manda, capitão. Vou meter o pé e deixar eles pra trás.

A carreta começou a acelerar com um rugido, rápido demais para um veículo daquele tamanho, muito mais rápido do que deveria considerando que iamos à margem do asfalto congestionado. Os outros sobreviventes se agarravam às traves da gaiola de ferro. O Coronel ditava as coordenadas, e Wiliam às seguia, margeando a estrada por fora. Mesmo com o eixo reforçado, os amortecedores sofriam com o peso da blindagem, e parecia que a carreta ia se partir ao meio. Alguém na carroceria pediu que Wiliam fosse mais devagar pelo interfone, mas o Coronel achou por bem ignorar. Decidi não questionar, e manter o silêncio ao longo do percurso, enquanto Matsumoto me sondava com os olhos semicerrados - usando a visão periférica, sem me encarar.

Chegamos às margens da represa na escuridão da noite sem lua - ainda víamos o brilho do fogo, mas estávamos muito distantes. A scania parou, e os faróis de milha instalados na carroceria varreram a área. Não encontraram nenhum desmorto nas proximidades, só uma meia dúzia de cambaleantes entre as casas, do outro lado do lago. O grupo começou a descer da carroceria e a demarcar um perímetro com balizas de metal ligadas por arame flexível, com dezenas de latas presas em fileira. Eles pareciam saber o que estavam fazendo, e bem demais para que eu arriscasse uma fuga imediatamente. Notando minha atenção, o Coronel se dirigiu a mim em um tom diferente, quase como numa ameaça amistosa:

__Não podemos confiar apenas nos sensores de movimento. As latas parecem um improviso, mas funcionam. - acho que ele ia dizer algo como "você está seguro aqui", mas mudou de idéia. __Me acompanhe, porque precisamos falar sobre algumas coisas.

O coronel caminhava em direção a margem do lago, tão logo o perímetro foi demarcado e declarado seguro pela equipe de reconhecimento. Eu apenas seguia. Quando percebeu que havia dominado o rumo dos meus passos, virou-se rápido como uma serpente, sem deixar espaço para hesitação

__ Onde está o resto do seu grupo?
__ Eu não tenho grupo. Estou por conta própria.
__ Sozinho? Como espera que eu acredite que você sobreviveu sem nenhuma ajuda quando nós perdemos vários companheiros, com todas as armas e treinamento que temos? É essa a estória que quer me contar?
__ Mais fácil sobreviver sozinho do que carregando nas costas o bando de malucos como os que você tem na caçamba. Pelo que vi, é um milagre que ainda não tenham se matado.
__Você tem a língua afiada, mas sua têmpera é fraca. O que fazia antes da epidemia?
__Um tipo de agronegócio.

O coronel pesou minhas palavras, sem alterar sua expressão. Por fim, vi algo como um sorriso surgindo nos lábios finos e apertados, e então encerrou a conversa:

__ Você fala demais, Mauro, mas não responde as minhas perguntas. Isso vai mudar.
__ Olha, eu não sei o que mais você quer saber, não tenho o que inventar, e também não tenho por que mentir. Se não se importar, gostaria de pegar meus bagulhos e cair fora.
__ E depois trazer o seu bando de saqueadores até nossa posição? Acho que não... Agora você faz parte da Resistência. Vá descansar, por enquanto. Amanhã você será avaliado e alguém explicará a sua função na equipe. Não tente fugir e nem faça nada idiota. Acredito que você já sabe que meu pessoal está de olho em você.