terça-feira, 10 de julho de 2012

A Casa de Virgínia Ortega, III


Os desmortos vão se amontoando sob a janela - são oito até agora, e mais outros tantos do lado de fora do portão. Eles olham para mim e esticam os braços débeis, mas estou fora do seu alcance. Considerados individualmente, os desmortos não passam de cadáveres podres reanimados, meio burros e com um feroz apetite por carne humana. Eles não são mais perigosos agora do que eram quando vivos - só estão mais famintos. Não é  como se fossem rottweillers ou velociraptors - são apenas gente morta cambaleando como se estivesse bêbada.

Certo, eles tem uma mordida pestilenta capaz de transformar você em um horror em decomposição algumas horas depois de infectado -  mas pessoas vivas também são capazes de coisas desse tipo.

O que eu acho realmente de foder nesses zumbis é que eles destroem a sua vontade de viver de dentro pra fora. Se você fica olhando muito pra eles, ouvindo eles gemendo e gritando... você começa a sentir vontade de desistir, começa a imaginar como é ser um deles.  O que me deixa mais enojado é esse som gorgolejante que eles fazem, como se estivessem sufocando, engasgados no próprio muco...

Eu vomito pela janela.

Os desgraçados começaram a gritar de novo. Minha visão está turva. Preciso checar o perímetro e cuidar dos primeiros socorros - meu kit e meus medicamentos ficaram na valise, mas não há motivo para entrar em pânico ainda: conheço bem esta casa.

Recupero meu machado no chão. Como eu supunha pela marcação, esta é a única janela que não estava barrada por dentro - porém estava protegida por um bizarro guardião sem corpo. Este corredor dá acesso a quatro cômodos e um banheiro,  e termina em uma escada que leva à cozinha na parte dos fundos e à tabacaria. Preciso verificar cada um dos cômodos antes de me certificar que a casa está mesmo vazia, mas antes preciso cuidar dos meus ferimentos. Estou perdendo muito sangue.

                                                                                      ***

Sentado na privada, finalmente dou uma olhada melhor no braço. O corte foi fundo, e o torniquete está ensopado de sangue. Com uma tesoura e uma pinça eu removo o corpo estranho, que parece mais um punhal do que um caco de vidro. O sangue escorre, grosso e abundante. Lavo o ferimento com sabão e água da privada (a única disponível), e sinto a cabeça variando enquanto a água oxigenada fervilha na ferida. Espremo os últimos gramas de um tubo de xilocaína que Mauro gastou de forma animalesca, como ele mesmo gostava de anunciar  quando fazia. Ouço a voz de Virgínia Ortega me chamando no andar inferior. Tenho certeza de que devia dar uns pontos nesse corte, mas não tenho nenhuma idéia de como fazer isso sem  linha e agulha. Coloco uma gaze bem apertada e improviso uma tipóia. Vai ter que servir.

                                                                                      ***

O banheiro é velho e apertado, mas tem uma estapafurdia banheira de louça e um piso em lajotas pretas e brancas todo desfalcado. No móvel onde guardávamos os suprimentos de farmácia sobrou muito pouca coisa - água oxigenada, sabão de enxofre granado, fita isolante, alguns metros de gaze, band-aids e um frasco de vitaminas Centrum. Melhor que nada, mas, a menos que eles tenham ficado MUITO doentes, fugiram com uma porrada de analgésicos e antibióticos.

Prendo a necessaire no cinto, como uma pochete. Preciso checar o resto dos aposentos, pegar o que preciso, e encontrar alguma pista de meus companheiros de sobrevivência.

Volto ao corredor, e verifico que a primeira porta está trancada. Colo os ouvidos na madeira tentando identificar qualquer som, mas não ouço nada além do zumbido que venho escutando desde a explosão do posto de gasolina. A porta está trancada.

Com uma machadada certeira na tranca e um chute frontal, a porta se abre. O machado está  erguido para garantir a iniciativa contra qualquer coisa que saia mordendo lá de dentro.

Este é o quarto onde eles dormiam, e está completamente vazio, exceto pela mobília desgastada e pelos diversos maços e garrafas vazias. Dou uma conferida no guarda roupas, e pego uma das enormes camisas xadrez  que Mauro sempre usava. O fedor dele ainda está na roupa, mas é melhor do que passar frio. Aproveito para meter a tesoura em um velho cobertor puído e improvisar um novo poncho. O inverno está chegando.

Na mesa de cabeceira, um copo de água cheio de larvas de mosquito soa o alerta de que preciso sair daqui o quanto antes. O lugar está cheio de mal-agouro. Posso sentir no ar, assim como o cheiro de podridão. Um arrepio desce pela minha coluna, e a palma das mãos começa a se molhar com o suor dos maus presságios.

Retorno ao corredor.

A outra porta, onde funcionava o escritório da tabacaria, também está trancada. Colo meus ouvidos e ouço um chiado, como uma tv fora do ar. Desço o machado na tranca e abro caminho para eliminar qualquer coisa que surja pelos batentes. Aguardo um segundo e nada acontece. Adentro o cômodo caótico.

O escritório é pouco mais do que um cubículo fedendo a cigarros, cheio de poeira e arquivos mortos que se empilham até o teto na parede dos fundos. Centenas de folhas sujas de papel ofício e bitucas de cigarro estão espalhadas pelo chão, cheias de anotações com a péssima caligrafia de Mauro. O chiado vem de um antigo rádio Mitsubichi ligado com uma gambiarra a uma bateria de carro. Pego aleatoriamente uma folha de papel e leio a garatuja de Mauro:

17/03 - ninguém responde
18/03 - ninguém responde
19/03 - ninguém responde
20/03 - ninguém responde
21/03 - ninguém responde
22/03 - sinal  do exército. sobreviventes devem evacuar para o litoral
23/03 - sinal da cruz vermelha. sobreviventes devem evacuar para as dioceses e igrejas matrizes
24/03 - ninguém responde
25/03 - ninguém responde

A caligrafia está trêmula e borrada, e foi escrita com um lápis cuja ponta furou o papel e se quebrou em diversos lugares. Me aproximo devagar até a escrivaninha sobre a qual está o antigo rádio Mitsubichi, e vejo um destes headsets chineses com o plug meio que conectado na entrada das pilhas. Mais folhas de papel se espalham sobre a mesa.

05/11 - ninguém responde
06/11 - ninguém responde
07/11 - ninguém responde

Estas datas foram carimbadas com tinta vermelha. A caligrafia está tremida, muito pior do que as anteriores. Minha visão volta a escurecer - não tenho mais tempo. Acho que esse filho da puta ficou maluco ou algo pior lhes aconteceu.

Quando vou desligar o rádio, começo  a distinguir uma voz masculina no meio da estática

tchiiiiiiiiiiiiiii...tchiiiiii.... atenção sobreviventes na Zona da Mata e Região tchiiiiiiiiiiii.... Comboios de evacuação partindo para o Porto do Rio de Janeiro nas próximas 72 horas. Se você tem entre 14 e 50 anos, deve se dirigitchiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... tchiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... Os demais devem permanecer onde estão. Uma força de resgate será enviada ao seu endereço para posterior.... tchiiiii...Esta é uma mensagem do Exército Brasileiro. Atenção sobrevitchhhhhhhhhhhiiiiiii....tchiiiiiiii...

PORRA! ISSO FOI HÁ MAIS DE DOIS ANOS!

                                                                                  ***

Desligo o rádio, e planejo levá-lo comigo... só preciso recuperar minha valise e encontrar uma mochila. Deve haver algo assim em algum lugar.

Retorno ao corredor.

Resta vasculhar o meu antigo quarto e a biblioteca. Depois, um pulo na cozinha e na tabacaria do andar de baixo, recolher as provisões que sobraram e encontrar um jeito de sair daqui. Me aproximo da porta do cômodo em que eu dormia, e, quando colo o ouvido na madeira, vejo um dos símbolos de Virgínia Ortega gravado no batente


                                                                        


Sinto meu coração pesar. O cheiro de podridão está mais forte agora, e o perigo é iminente. Eu SEI disso. Eu posso SENTIR.

Com cuidado, me afasto da porta e coloco o lado pé-de-cabra do machado na dobradiça. É preciso mais força quando se faz isso com um braço só... Uso o meu peso e a primeira dobradiça cede. Depois, faço o mesmo com a segunda. A porta pende por uns segundos e depois cai.

BLAM! BLAM!

Ouço dois tiros. O cheiro de pólvora domina o quarto apertado. Eu me aproximo com cuidado e vejo a escopeta de cano serrado atada ao criado mudo, com os dois canos ainda fumegantes. Um fio de arame arrebentado conectava os gatilhos à maçaneta da porta, passando por um rolamento preso no teto.

O mecanismo foi elaborado por uma mente simples e brutal.

Foi por muito pouco.

O colchão onde eu costumava dormir está uma nojeira, e, pelo fedor, vinha sendo usado por Mauro nos dias em que não conseguia sobrepujar a força de Virgínia. Há um fedor de fezes e mijo seco vindo do guarda-roupas onde eu costumava guardar as minhas tralhas. Garrafas, latas de cerveja e maços vazios  espalhados pelo chão completam a cena. 

A escopeta de cano duplo está presa de modo precário no móvel, e eu a recolho satisfeito. Abro a gaveta, e encontro uma embalagem de papel acartonado quase cheia, com 10 cartuchos

"Imbel - munição .12 tipo flechette"

Recarrego a escopeta e prendo-a no cinto. Nunca usei uma destas, mas é uma arma de poucos segredos. É só quebrar o cano e colocar os cartuchos. O gatilho é automático e não há travas de segurança.




Simples e brutal

Talvez aquele porco egoísta tenha deixado mais alguns cartuchos, de maneira que decido vasculhar o móvel. A fedentina é forte, mas quando abro o armário, o choque do fedor e da imagem que vejo me fazem sacar a arma instintivamente e recuar.

Eu vomito no chão, e procuro uma parede  para me apoiar.

No meio de um monte de bosta e trapos mijados, vejo um boneco de pano com duas agulhas de tricô atravessadas na cabeça. O boneco está amarrado com um cachecol que me pertencia, e está sentado em um prato de merda ao lado de um maço de Lucky Strike fechado e uma garrafa de Almadém tinto. Eu me preparo pra dar um tiro de escopeta naquela profanação, mas contenho meu impulso. Não estou em posição de desperdiçar esse cabernet. Me aproximo do boneco medonho com cuidado e recolho o meu butim.

Há um papel pardo no fundo do armário, em que se pode ler numa caligrafia riscada com bosta e dedos.

                  
                  VOCÊ VAI MORRER SEU CANALHA
                  VOCÊ VAI PAGAR PELO QUE FEZ COM A GENTE


Tenho ânsias de vômito, mas não resta nada no estômago  para vomitar. Saio cambaleando do quarto imundo, tropeçando em minhas próprias pernas, a cabeça rodando sem conseguir respirar. Ignoro a porta da biblioteca e viro à esquerda em direção ao hall da escada, que também dá acesso ao balcão. Dobro o corredor apressado, e logo me arrependo da minha imprudência




Virginia Ortega está pendurada na ponta de uma corda.
As varejeiras esmeralda compõem a corte da rainha morta. 

Sinto  vontade de chorar.
Por um instante fico perdido, contemplando a face enegrecida de Virgínia devastada pelos animais invertebrados. A língua negra e inchada se projetando até o queixo de uma maneira obscena. Os olhos ressecados ainda estão abertos, e encontram os meus pela última vez.

Sinto vontade de chorar, mas não derramo uma única lágrima por Virgínia Ortega.
Estou desidratado.

                                                                                      ***

Desço a escada correndo, deixando para  trás o cadáver envolto na nuvem de varejeiras verdes que refletem a luz da janela. Vou até a cozinha atrás de um gole de água, mas encontro apenas uma lata de Kaiser esquecida atrás de um pacote de maizena, ambas vencidas.

A tabacaria se converteu numa extensão do quarto de Mauro, e tem o cheiro entranhado de milhares de cigarros e cerveja choca. O chão é uma imundície de bitucas, maços e garrafas espalhadas.

O filho da puta fumou tudo. TUDO!

Dou um chute irritado no balcão, e a caixa registradora se abre com um trinado de escárnio.
Quebro a vitrine com o machado, e começo a separar as coisas que ainda podem me servir.

- uma dúzia de isqueiros Zippo e latas de fluido original
- dois cachimbos: um rhodesian reto e um churchwarden vermelho
- duas caixas de Borkum Riff Black Cavendish
- uma "faca de caça":  sei que não posso confiar muito nela, mas a bainha magnética e a lâmina negra me convenceram.
- cinco tubos de super bonder "genérico".
- linha de pesca, e anzóis - que eu guardo na necessaire.
- um "dichavador-bússola" e uma seda smoking - just in case
- uma caixa de fogos de artifício "Cienfuegos Maggia", e uma de "Girândola 468 tiros" - seja lá o que for.

Não sei por que razão idiota as tabacarias brasileiras vendem equipamento de pesca. De uma maneira ou de outra, essa idiossincrasia comercial me serve bem - preciso recuperar a minha valise. Subo com a tralha toda de uma vez para evitar passar pelo cadáver de Virgínia novamente.

                                                                                      ***

Vou até o parapeito da janela por onde entrei, e abro a lata de Kaiser.  Por um instante, contemplo os mortos com seus braços débeis tentando me alcançar, enquanto gorgolejam sua nojeira infecta.

Está na hora de acabar com a palhaçada.

BLAM! BLAM!
     BLAM! BLAM!
          BLAM! BLAM!
              BLAM! BLAM! 



Sopro o cano da escopeta e carrego os dois últimos cartuchos.

Usando um anzol que poderia fisgar um pacu, preso ao fio de nailon mais grosso que encontrei, eu resgato a minha valise com cuidado do meio da carnificina. Os desmortos não passam de uma massa disforme de podridão, ossos e coágulos esparramados no chão. Os outros começam a gritar no portão.

Acendo um luckie e termino minha lata de Kaiser, enquanto as labaredas consomem o primeiro edifício do quarteirão.

4 comentários:

  1. "The winter is coming!"
    Hahahahahaha...
    Estou curioso para saber os próximos passos da personagem mas queria saber o nome dele...

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  2. http://www.youtube.com/watch?v=tW3bWvBDY88
    trilha sonora para o capítulo!

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  3. rssrsrs "THE WINTER IS COMING!" (2)
    Gostei do q vc fez! rs agora, como ele vai achar uma saida????... teeenso!

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