terça-feira, 17 de julho de 2012

A Casa de Virgínia Ortega, IV





Enquanto termino o cigarro e observo a fogueira gigante avançando sobre os prédios, tenho um pensamento desalentador: o fogo não vai demorar a tomar a parte baixa da rua, e terei que lidar com a multidão de desmortos que fogem do fogo na minha direção. Minhas chances de sobrevivência vão se reduzindo minuto a minuto, enquanto os mortos cambaleiam para fora dos edifícios no entorno do sobrado.

A valise com meus suprimentos está toda furada pela rebarba dos tiros de munição flechette, ensopada de sangue e de alguma outra coisa que vaza do interior. Infelizmente, é tudo o que tenho para transportar os víveres que possuo. Apesar de esculhambada e cheia de furos, manter esta velha mala de mão ainda é melhor do que andar por aí com uma trouxa ou a porra de um carrinho de compras.

Abro a valise para acomodar o meu saque. O interior está todo lambuzado de calda de pêssego e tinta prateada - uma das latas de spray explodiu ao ser perfurada pelo chumbo. Não há tempo para contabilizar os estragos.

Preciso ser rápido. A multidão de desmortos está aumentando.

***

A porta que dá acesso à biblioteca está com o ferrolho destrancado, o que me faz adivinhar uma armadilha. Que tipo de maldade me aguarda do outro lado é algo que não posso saber, mas os eflúvios malignos estão por toda parte, e escapam pelas frestas. Posso sentir o perigo, mas não tenho tempo para tomar muitas precauções.

[O Homem que está de pé ante uma porta estranha deve ser cauteloso
antes de cruza-la, esteja atento:
Quem sabe de antemão que inimigos podem estar
 esperando por ele na entrada?]

Eu preciso encontrar o livro.

De novo repito o procedimento de quebrar as dobradiças com o bom e velho machado. A porta cede, mas eu não ouço nenhum som além do zumbido das varejeiras que cortejam o cadáver de Virgínia a poucos metros da porta.

Sei muito pouco sobre o livro que procuro - Virgínia nunca me permitiu que o lesse. Sei apenas que o título é "Morte em vida no Haiti", e foi datilografado à maquina nas semanas seguintes ao Grande Terremoto naquele país. A obra nunca foi publicada, mas conheci Virgínia Ortega, e sei que não era o tipo de pessoa que deposita esperanças em esforços inúteis. O livro deve conter alguma informação crucial sobre a desgraça que devastou a humanidade.

Sei também que foi escrito por um professor de geologia que estava em missão no Haiti no início de 2010, quando aconteceu a catástrofe. Apesar das farpas de ironia que deixava escapar quanto a sanidade do professor, eu notava em sua inflexão vocal um profundo respeito pelo homem. Ela mencionou mais de uma vez  que o velho vivia recluso em um chalé isolado, cercado de relógios de sol construídos para medir horas que os homens comuns desconhecem.

***

O cômodo que abrigava a biblioteca está um caos. Milhares de páginas espalhadas pelo chão me contam que Mauro andou pesquisando literatura estrangeira. Uma pilha de merda seca e páginas sujas emboladas em um canto denotam que ele também vinha usando o cômodo como banheiro, e que, pelo menos, ainda tinha asseio o suficiente para limpar a bunda. O cheiro do mijo impregnado nos tacos de madeira do piso me golpeia como um soco no nariz, que começa a sangrar. 

[adanac manikoush qualalar]

Sinto minhas forças saindo do controle, o sangue escorrendo pela barba. Minha cabeça começa a doer como se estivesse se partindo ao meio. Sinto uma presença poderosa rompendo meu crânio de dentro pra fora.

A estante está repleta de livros, sobre diversos assuntos e em várias líguas. Eu duvido que vá encontrar o que estou procurando. Começo a revirar os livros,  desistindo de folheá-los. Vou procurando sem nenhuma ordem, e então começo a jogá-los de qualquer jeito sobre a escrivaninha. O desespero se infiltra através da minha pele, e eu começo a me descontrolar. 

  [arghuk denmar yosha manikoush]

Minha consciência está fendida. Não reconheço os pensamentos que me assaltam. Sinto minha força sucumbir diante da verdade cada vez mais palpável: eu jamais sairei desta casa condenada!

[ jagha qualalar manikoush] 

Com a súbita percepção da minha impotência, abandono meu autocontrole e me deixo levar pela raiva. Os livros restantes vão todos para o chão, assim como a estante, e eu  volto minha ira contra a escrivaninha cheia de papéis espalhados e objetos inúteis. Desço o machado com força sobre o móvel, e começo a destruí-lo num acesso de fúria rompante e desenfreada. O machado trabalha incansávelmente, depredando livros raros e madeira como se tivessem culpa e vida própria. Meus braços são governados pela força da loucura.
ONDE VOCÊ ESCONDEU A PORRA DO LIVRO!? ONDE ESTÁ A MERDA DO LIVRO SUA DESGRAÇADA!?!? ONDE ESTÁ...

O machado quebra algo que produz um som metálico, algo que se parte e cai no chão.

Uma melodia singela e cristalina pulveriza minha fúria, demolindo minha força de vontade e deixando um enorme buraco que se preenche de melancolia. O dique da ira se rompe em uma cascata de lágrimas que não posso controlar. A caixinha de música executa sua melodia perpétua pela última vez. 

Dentro da caixa, há uma chave dourada de aparência muito antiga. Eu a recolho por instinto e tento recobrar minha consciência.

***

Eu deixo a biblioteca trocando as pernas, desnorteado. Minha cabeça lateja como se tivesse levado uma paulada - o nariz ainda sangra. Eu pego a valise deixada junto à porta, mas a chave dourada eu guardo no bolso - o mesmo bolso onde encontro o mapa amassado e manchado de óleo. É minha última chance.

Contemplo o rosto deformado de Virgínia Ortega pela última vez, e só então percebo que a rigidez cadavérica imprimiu em sua face um último sorriso. Seco as lágrimas e o nariz, e me despeço dela em silêncio.

***

IIIIRRRRRCCGH!!!
                IIIIRRRCCGH!!!!!!
                    IIIIIIIRRRRCCCGGH!!!!!!!!!!!!!!



As critaturas recomeçam o seu grito infernal, e o som hediondo se multiplica em todas as direções, ganhando mais volume conforme outros monstros vão respondendo ao chamado, compondo um coro funesto.

Arrebento a porta dupla que leva à sacada com um chute frontal, e então eu contemplo o exército dos mortos.

São milhares de cadáveres subindo a rua, alguns ainda emergindo das chamas se amontoando com os braços estendidos na direção do balcão.

Eles são milhares. MILHARES!

Um comentário:

  1. vc tá melhorando o texto, a história está ficando mais tensa. Queria mesmo que ele achasse o tal livro
    =D
    PS: o bom de ter ficado um tempo sem aparecer por aqui é que não preciso esperar vc lançar o próximo texto, rsrs

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