segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Má Companhia



O fogo queimou por um longo tempo, e as chamas engoliram tudo o que estava em seu caminho.
Prédios, placas, árvores, casas, carros, corpos - o fogo devastou tudo, até que a cidade fosse reduzida a ruínas de cimento negro e aço retorcido.

Tudo queima.

Por nove dias e nove noites a cidade ardeu em uma pira, mas, depois do incêndio, a cidade estava pura. Os caminhos que tomarão as almas que também arderam é desconhecido para mim, mas ao menos os corpos foram honrados. Não precisarão mais vagar pelas ruínas, sedentos, famintos, sem ter para onde ir. O bem que fiz ao incendiar a cidade foi maior do que o mal que causei, e ninguém pode desejar nada melhor do que um funeral digno nos tempos do Ragnarök.

Por nove dias e nove noites eu também queimei, e, assim como a cidade, também fui purgado pelo fogo. Agora, com um prato de sopa quente e diante da fogueira, eu me recordo do sofrimento sem dores ou remorsos.

***

__ Você não está vendo?! Ele foi MORDIDO! Porra, Sérgio, ele tá infectado!
__ Isso não é uma mordida, porra! -  eu sou um DENTISTA, e devo saber alguma coisa sobre mordidas!!! este é um ferimento circular num braço imundo, e só! você já viu um zumbi com boca de cu e dente de vidro? então, NÃO é uma mordida! mas você está certa numa coisa: essa merda vai infeccionar e esse cara tá fodido, de um jeito ou de outro.

Miranda saiu pisando duro e foi conspirar com os dois Pedros - o mecânico e o "Metralha". Fui me acocorar num canto da carroceria, tentando não encarar nenhum deles e evitando qualquer tipo de contato - as barras na carroceria me remetiam à cadeia, e, por acaso, eu sei como me portar quando entro em uma cela. Fechei a face e a mente, mas meus pensamentos foram capturados por alguém que tinha um faro impressionante para as fraquezas humanas. Os outros tripulantes me ignoravam completamente.

__Esta é a água da redenção. Beba, meu filho.

Tomei a garrafa pet de suas mãos num impulso, imaginando que o pastor pudesse me obrigar a beijar uma bíblia antes de saciar minha sede. Depois de um dia de horror e jaggermeister mal dormido, este seria um argumento perfeito para uma conversão pública e instantânea. Mas não queria fazer isso ainda.

__ Tua sede não é de água ou de alimento, é sede de Espírito. Você deseja viver, meu irmão. É esta a sede que te consome. Beba, filho. Beba à vontade.

E eu bebi, e senti a água descendo pela garganta como se jorrasse do rio do Éden. Eu bebia como um desesperado, a água escorrendo pelo queixo barbado e imundo. Ouvia o som da catequese se aproximar e se afastar, mas não prestava atenção às palavras suaves e ululantes nos meus ouvidos - a voz do sacerdote era penetrante e hipnótica. Contudo, havia algo de errado nele... os olhos tinham uma marca de dureza que não me deixava enganar. Não piscavam, e seu sorriso surgia do nada, de uma forma que me pareceu inverossímil desde o início - um animal que mantém os dentes brilhando mesmo no fim do mundo só poder ser um predador. Ele falava sem parar com sua voz de pássaro, mas os dentes brancos e os olhos imóveis denunciava a natureza do crocodilo.


 [Aqueles que tem visto e tem sofrido muito,
e sabem as maneiras do mundo que tem percorrido,
podem dizer que espírito governa
aos homens que encontram]


__ A  única água que pode saciar a sua sede é a água do Espírito. Beba à vontade, filho, este é um manancial inesgotável de vida. Beba mais um pouco, hoje a tua sede será saciada.

E eu bebia mais, até não poder aguentar. Era a primeira água que eu bebia em mais de 24 horas.

__ Posso fumar um cigarro? - Tentei parecer natural, mas a verdade é que o homenzinho estava me colocando medo, de verdade. Preferia que deixasse a água e fosse embora com a fumaça, mas ele parecia determinado a me falar do seu deus e de outras bobagens, antes de me conceder a dádiva de fechar os olhos por uns minutos e recuperar o fôlego.

Mas não houve descanso.  Nem sequer pude terminar meu cigarro.
Miranda e seu pittbul não permitiram.

__ Aí, JP. O Coronel quer ver o Neandhertal que nós capturamos. Levanta, Neandher!

Num primeiro momento ignorei a voz imperativa de Miranda, mas não por falta de ímpeto dela ou por algum orgulho que eu pudesse preservar na minha condição - algo na forma como todos me olhavam me diziam que eu estava preso, e minha estratégia começava a ficar clara a medida que me dava conta desse fato.

Assim como no xadrez, entendi que ceder a posição significaria perder espaço - e eu não tinha conseguido mais do que sete murros e um litro d'água. Encarei a garota com o cigarro entre nós, e vi quando ela começou a sentir o meu peso. Os olhos dela iam arriar, mas o Metralha me deu um chute nas costelas, e este era um argumento completamente diferente. Quando me levantei, Pedro Metralha tomou o maço das minhas mãos, ao mesmo tempo em que Miranda me puxava pelo braço ferido. Gritei de dor, e deixei o cigarro cair - eles me atacavam como uma matilha, enquanto o pastor observava, finalmente em silêncio. Pedro mecânico fumou o toco que restava do meu cigarro, o que revelava seu lugar inferior na hierarquia daquele bando: se tivesse certeza de que os companheiros compartilhariam a pilhagem, teria esperado um cigarro inteiro. Mas o homem se limitou a olhar faminto para o maço de cigarros e para a mulher.

Aquele era um elo fraco. 

***

Fui empurrado para a cabine da scania através de um teto solar com barras de metal. O piloto da máquina de massacrar desmortos é o homem franzino a quem chamam Wiliam. Carlos Matsumoto estava no comando, e sentava-se a sua direita. A minha primeira impressão sobre ele foi de que o coronel não era um ser humano, mas sim um cyborg: suas feições eram chapas de aço forjadas a frio.

__ Você está aqui desde o início? Estava aqui, nesta cidade?
__ Sim. Me chamo Mauro. Muito obrigado pelo resgate, mas...
__ Vamos deixar as apresentações e os agradecimentos para depois. Responda. Preciso das coordenadas para sair daqui.- eu tentava não encará-lo, mas era impossível. __ Diga para onde você estava indo. Mostre onde fica o seu refúgio.
__ Eu estava fugindo sem rumo, sem nenhuma direção.
__ Responda o que quero saber agora.

Não menti quando disse que não sabia para onde estava indo. Nas últimas doze horas, não pude enxergar nada que estivesse mais de um passo adiante - mas essa resposta não servia para o Coronel, cuja voz agora mostrava o gume afiado. Eu não podia entregar o mapa com os meus refúgios e anotações. As ruas principais estavam muito bloqueadas, mas eu conhecia um caminho que me daria algum tempo.

[sábio não é quem nunca está calado
e balbucia palavras sem sentido:
um linguarudo eloqüente que segue falastrão,
canta a seu próprio dano]


__O que sabe sobre este lugar aqui, à margem do rio e da rodovia? - o coronel apontava um mapa, mostrando o local afastado na parte alta da cidade, o mesmo que eu pensava em informar. Não tinha nenhuma intenção de revelar o meu próprio mapa ou o meu verdadeiro refúgio, mas o cretino leu os meus pensamentos, ou, mais provavelmente, seguiu meus olhos quando se fixaram na área da represa enquanto ponderava se deveria ou não revelar minha principal fonte de água. Pelos deuses! Eu não estava lidando com simples psicopatas... Se eu não o satisfizesse com minha próxima resposta, ele encontraria um meio de extraí-la.

__ É a represa. Fica do outro lado da cidade, e podemos contornar por fora do perímetro urbano.
__ Isso é óbvio. Fale o que quero saber.
__ O caminho está limpo, mas os mercados também. Tem poucas casas lá. E muitos mortos, como em toda parte.
__ Mostre o caminho para o Wiliam. O caminho que você ia tomar.
__ Se é o que você quer, tudo bem, mas...
__ Mostre o caminho.- o coronel falava baixo, mas agora soava como uma espada saindo da bainha.

As coisas estavam começando a funcionar. Eles se revelavam, enquanto meus pensamentos permaneciam ocultos nas sombras.


***

Wiliam seguiu minhas orientações, mas na metade do trajeto eu já não era necessário. Ele era mais do que um piloto de fuga - sabia ler o mapa e também onde bater nos carros. Também sabia como massacrar o maior número de zumbis que fosse possível. Quando tinha pista limpa, Wiliam fazia soar a buzina de cargueiro, e os desmortos eram atraídos para uma segunda morte sob toneladas e toneladas de aço. O rapaz era franzino, mas tinha sua forma de ser pesado.

__ Parece que não, mas eles são todos iguais. Repetem sempre o mesmo movimento, e todos copiam o que o primeiro faz. A gente tem que matar o máximo possível, é nosso dever.
__ Mas eles seguirão a buzina - o rapaz deu de ombros. Ele escolhia o perigo.
__ Eles são muito burros. A intenção é essa. Esse é o trabalho da Resistência.
__ Wiliam, a partir deste trecho não devemos atrair mais atenção - o coronel cortou nossa conversa. Vire à esquerda, e depois suba à direita. Estamos chegando ao nosso objetivo.
__ Você é que manda, capitão. Vou meter o pé e deixar eles pra trás.

A carreta começou a acelerar com um rugido, rápido demais para um veículo daquele tamanho, muito mais rápido do que deveria considerando que iamos à margem do asfalto congestionado. Os outros sobreviventes se agarravam às traves da gaiola de ferro. O Coronel ditava as coordenadas, e Wiliam às seguia, margeando a estrada por fora. Mesmo com o eixo reforçado, os amortecedores sofriam com o peso da blindagem, e parecia que a carreta ia se partir ao meio. Alguém na carroceria pediu que Wiliam fosse mais devagar pelo interfone, mas o Coronel achou por bem ignorar. Decidi não questionar, e manter o silêncio ao longo do percurso, enquanto Matsumoto me sondava com os olhos semicerrados - usando a visão periférica, sem me encarar.

Chegamos às margens da represa na escuridão da noite sem lua - ainda víamos o brilho do fogo, mas estávamos muito distantes. A scania parou, e os faróis de milha instalados na carroceria varreram a área. Não encontraram nenhum desmorto nas proximidades, só uma meia dúzia de cambaleantes entre as casas, do outro lado do lago. O grupo começou a descer da carroceria e a demarcar um perímetro com balizas de metal ligadas por arame flexível, com dezenas de latas presas em fileira. Eles pareciam saber o que estavam fazendo, e bem demais para que eu arriscasse uma fuga imediatamente. Notando minha atenção, o Coronel se dirigiu a mim em um tom diferente, quase como numa ameaça amistosa:

__Não podemos confiar apenas nos sensores de movimento. As latas parecem um improviso, mas funcionam. - acho que ele ia dizer algo como "você está seguro aqui", mas mudou de idéia. __Me acompanhe, porque precisamos falar sobre algumas coisas.

O coronel caminhava em direção a margem do lago, tão logo o perímetro foi demarcado e declarado seguro pela equipe de reconhecimento. Eu apenas seguia. Quando percebeu que havia dominado o rumo dos meus passos, virou-se rápido como uma serpente, sem deixar espaço para hesitação

__ Onde está o resto do seu grupo?
__ Eu não tenho grupo. Estou por conta própria.
__ Sozinho? Como espera que eu acredite que você sobreviveu sem nenhuma ajuda quando nós perdemos vários companheiros, com todas as armas e treinamento que temos? É essa a estória que quer me contar?
__ Mais fácil sobreviver sozinho do que carregando nas costas o bando de malucos como os que você tem na caçamba. Pelo que vi, é um milagre que ainda não tenham se matado.
__Você tem a língua afiada, mas sua têmpera é fraca. O que fazia antes da epidemia?
__Um tipo de agronegócio.

O coronel pesou minhas palavras, sem alterar sua expressão. Por fim, vi algo como um sorriso surgindo nos lábios finos e apertados, e então encerrou a conversa:

__ Você fala demais, Mauro, mas não responde as minhas perguntas. Isso vai mudar.
__ Olha, eu não sei o que mais você quer saber, não tenho o que inventar, e também não tenho por que mentir. Se não se importar, gostaria de pegar meus bagulhos e cair fora.
__ E depois trazer o seu bando de saqueadores até nossa posição? Acho que não... Agora você faz parte da Resistência. Vá descansar, por enquanto. Amanhã você será avaliado e alguém explicará a sua função na equipe. Não tente fugir e nem faça nada idiota. Acredito que você já sabe que meu pessoal está de olho em você.

2 comentários:

  1. A história continua muito boa! O "Mauro" ainda vai arrumar merda com essa galera.

    Espero o próximo "episódio"!!

    Abçs

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  2. vamboraaaaaaaaaaaaaaaaa, atualizaaaaaa heheheh

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